O Diário de Ekah

“Uma criança, uma professora, uma caneta e um livro podem mudar o mundo”
(Malala Yousafzai)

O nome original deste filme é “O Diário do Pescador” (“The Fisherman’s Diary”). Mas ele não expressa a essência da produção, pois a menina Ekah é a grande protagonista, filha de um pescador africano. Ela (Faith Fidel) tem 12 anos, sonha poder estudar e esconde, em um armário próximo de sua cama, no casebre onde mora com o pai, um cartaz de Malala Yousafzai, que traz legendas em defesa da Educação. Isso a fascina, mas o pai Solomon interpretado por Kang Quintus (produtor do filme) encontra o cartaz, queima-o junto com os poucos cadernos da menina. Todo o desenrolar do filme, que é dirigido por Enah Johnscott, de Camarões, se dá em função da luta da menina para escapar dos preconceitos impregnados no povo de sua vila, e para conseguir frequentar a escola local. A personagem principal, ao ser proibida pelo pai de assistir às aulas, dribla o veto paterno vendo as aulas através de uma fresta na parede da sala de aula.

O enredo é marcado pela história da mãe da menina, falecida na época em que transcorre a ação, mas que transpôs as barreiras do impedimento das mulheres de estudarem e de buscarem sua autonomia. Também a professora da Escola local Bihbih (Damarise Ndamo), uma mulher forte e objetiva, que defende que a menina estude e ainda possa participar de um torneio feito no país entre as escolas, já que Ekah, entre as crianças da aldeia, foi a única que alcançou conhecimento que lhe dava condição de participar do referido torneio.

A vida de Ekah é a de milhares de meninas em vários países, impedidas de estudar, envoltas por esmagadora pobreza e tendo que olhar pela casa. Além disso, cuidar do pai e da venda dos peixes com que subsistiam. A batalha da menina para poder estudar é comovente, tanto por sua genialidade como pela consciência que já demonstra de que o estudo poderia tirar sua aldeia da pobreza em que vivem. Ao longo da película envolvemo-nos com a personagem e torcemos por ela, já que a mensagem central é romper com a dominação e opressão em que vive a menina e seu simples desejo de estudar.

O filme ainda trata de um tema infelizmente ainda muito presente, inclusive no Brasil: casamentos precoces e estupro. Ekah, vítima da cultura patriarcal, é submetida por artimanhas do tio e pela ignorância do pai a condições vis de subordinação sexual.

O estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, divulgado pelo Portal Catarinas, por ocasião do dia da criança em 12 de outubro, a partir de pesquisa realizada pela enfermeira Vânia Muniz, mapeou perfil das meninas mães, com menos de 14 anos, no Brasil entre 2010 e 2019, e chegou à estarrecedora realidade segundo a qual, em média, uma criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil. Em nossa resenha da semana passada já destacamos essa pesquisa, em função de sua importância e de sua gravidade. O resultado da pesquisa evidencia as violações ao direito de ser criança, e, no caso do Brasil, é crime conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso está no artigo que denuncia o estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217-A do Código de Processo Penal.

Os dados assustadores dão conta de que, nos últimos dez anos, entre 2010 e 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos, além de 12 meninas com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos. Isso representa uma média de 25.280 casos de gravidez de vulnerável por ano, ou 70 crimes por dia. Ainda, 4.948.724 adolescentes de 15 a 19 anos foram mães, o correspondente a 17% dos nascidos vivos.

Em nossa resenha da semana passada, publicada no Portal Vermelho, destacamos que aproximadamente 80% das vítimas de violência sexual são mulheres, e mais de 50% tem menos de 13 anos. Segundo dados de 2018 da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), a gravidez na adolescência é um grave problema de saúde pública no Brasil. O caso recente da menina estuprada por um tio no estado do Espírito Santo, que enfrentou vários obstáculos, inclusive da parte do Estado (por meio da ministra Damares), que deveria defendê-la, é emblemático. Ela conseguiu o direito de abortar, mesmo assim em outro estado brasileiro que não o seu de origem – mais uma mostra da barbárie instalada no Brasil de Bolsonaro.

O filme em análise nos comove e chama para pensar sobre como um assunto como a educação deveria ser assegurado como direito inalienável, mas torna-se um desafio da vida de uma criança. Além disso, faz o espectador refletir também como Ekah é obrigada a crescer e a enfrentar os seus desafios e medos sozinha. Convido a assistir à jornada de Ekah, que acaba por se transformar num exemplo de algo que acontece a muitas outras crianças, inclusive no Brasil dos tempos atuais, onde 116,8 milhões de pessoas, mais da metade da nação, vive em insegurança alimentar e 19 milhões passam fome, sem falar na condição de educação dessas crianças. Para além disso, importante lembrar que a menina Ekah é negra, e que são as meninas negras as que mais sofrem violências no Brasil, seja na exploração do trabalho infantil, seja na violência sexual, na morte precoce entre outras violações de direitos, resultado de uma herança escravocrata e do colonialismo que está presente na estruturação da sociedade brasileira, sendo necessário e urgente a luta contra as opressões presente no racismo e no machismo.

• Filme: O diario de um pescador
• Elenco: Faith Fidel, Damarise Ndamo, Cosson Chinopoh, Onyama Laura, Prince Sube Mayorchu, Godwill Neba, Daphne Nije, Ramsey Nouah, Kang Quintus
• Duração: 153 min.
• Diretor e produtor: Enah Johnscott
• Acessível no streaming da Netflix.

Referências:

https://catarinas.info/uma-crianca-e-mae-a-cada-20-minutos-no-brasil/
https://vermelho.org.br/coluna/o-menino-que-descobriu-o-vento/
https://www.comumonline.com/2021/05/o-diario-do-pescador-o-relato-de-uma-triste-realidade/