O falso bipartidarismo norte-americano

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Talvez você imagine que The winner takes all é só o título de uma música do conjunto sueco Abba e winner and loser é expressão usada por coaches em treinamentos coorporativos. No entanto, a expressão “o vencedor leva tudo” é como os americanos definem o sistema de poder e eleitoral construído nos Estados Unidos e “vencedores e perdedores” é como são classificados por eles os indivíduos de sua sociedade, em decorrência  da sua visão de poder. Um sistema de poder e de escolha de representantes surgida em um período em que os partidos políticos ainda não haviam ganhado importância e a representação era depositada em indivíduos.

               Historiadores afirmam que o embrião dos primeiros partidos surgiram já na Revolução Gloriosa, na Inglaterra, no século anterior à formação do Estado norte-americano. A sociedade inglesa se encontrava dividida entre a aristocracia e a burguesia emergente na disputa pelo controle do Estado. Assim, duas correntes se constituíram, sendo a primeira aquela que apoiava a monarquia, os Tories, e a segunda os Whigs, constituída pelos defensores do parlamento. Os primeiros dariam origem ao atual Partido Conservador e os últimos, ao Partido Liberal. Na França, antes da independência norte-americana, a Assembleia Nacional já se dividia entre girondinos e jacobinos. Tratava-se, no entanto, de correntes de opinião ou talvez pudéssemos chamar de partidos embrionários. Na Inglaterra, a indicação dos representantes ao parlamento vinha de uma tradição da Idade Média, onde cada condado escolhia o seu, de forma que a eleição por região, em votação majoritária, era a única conhecida. A ideia de eleições proporcionais só viria a ser usada mais recentemente, quando outros segmentos ou classes sociais começaram a ganhar protagonismo e surgiram então os partidos políticos como os conhecemos hoje. O primeiro país a adotar o sistema proporcional foi a Bélgica, em 1900.

               Nos Estados Unidos, uma vez que partidos ainda não existiam e, a princípio, setores de uma única classe social viriam a constituir o novo Estado nacional, os “pais fundadores”, como foram chamados os convencionais da Filadélfia, como já vimos nos artigos anteriores, pensaram em representações dos seus diferentes estados e não em representação de segmentos ou classes sociais. A ideia central sempre foi conferir mais poder aos estados e menos poder aos cidadãos. Tal Estado, no entanto, nasceu com uma divisão interna que atravessaria décadas e deixaria traços até os dias atuais, com um presidencialismo aparentemente bipartidarista. A Convenção da Filadélfia se dividiu entre os federalistas, que almejavam um poder central estruturado, e os antifederalistas, que desejavam que os estados geográficos formassem seus próprios Estados e que a unidade se caracterizasse como algo que se pareceria com os blocos da atualidade, a exemplo do bloco Europeu. Ou seja, os antifederalistas queriam um poder mediador e não um poder central.

               Que tipo de poder deveria ser constituído não era a única questão que dividia os “pais fundadores”. Os federalistas representavam os estados do norte, onde a burguesia mercantil e financeira era hegemônica, e os antifederalistas, os estados do sul, onde predominava a burguesia rural. A questão da escravatura era outro ponto de discordância entre as duas correntes e se converteria no principal elemento precipitador da guerra civil, quase um século depois.

               Como se pode deduzir pelas características do Estado que se formou, os federalistas eram maioria e foram hegemônicos no controle do poder nos primeiros anos de existência da nova nação. E com o nome “federalistas” se identificaram. Tendo sua posição quanto à configuração do poder central derrotada, os antifederalistas passaram a se identificar como “democratas-republicanos”. Poucos anos se passaram e o movimento federalista se dissolveu dando lugar ao movimento whigs, já representando então, além da burguesia mercantil e financeira, também a burguesia industrial, ainda hegemônicas nos estados do norte. Os democratas-republicanos constituíram o Partido Democrata, considerado por muitos o partido mais antigo do mundo, que continuava representando a burguesia rural e se mantinha defendendo os ideais antifederalistas. As duas principais divergências entre as duas correntes, ou seja, a questão do poder central e a da escravatura, só viriam a se resolver com a Guerra da Secessão.

Em 1854, os whigs formaram o Partido Republicano, que elegeria Abrahan Lincoln em 1860. Em 1861, os estados do norte e os do sul, consequentemente republicanos e democratas, lançaram-se em um conflito armado que duraria 4 anos. A Guerra da Secessão resolveria as divergências centrais, mas tanto o Partido Republicano quanto o Partido Democrata sobreviveriam e suas características territoriais também. Ou seja, o país se manteve dividido entre estados republicanos e estados democratas.

Muitos historiadores demarcam a grande depressão como o momento a partir do qual os partidos Republicano e Democrata ganham importância na política norte-americana enquanto partidos de fato. Tal opinião se fundamenta no fato de que, ao aderir ao pensamento keyniano e formular o New Deal para salvar a economia americana, o Partido Democrata se definia a partir de um programa próximo ao pensamento social-democrata, enquanto os republicanos se afirmavam em um programa conservador liberal. Afirmam, ainda, que essa polarização permanece até os dias atuais e que é o bipartidarismo que justifica a estabilidade do regime presidencialista estadunidense, diferente de seus vizinhos latino-americanos.

Considero esta interpretação um profundo equívoco. Não que no período pós 1929 os dois partidos não tenham alterado sua essência, mas isso não foi suficiente para mudar a essência do Estado norte-americano. A questão central é que a organização do poder foi estruturada de tal forma que se constituiu exclusivamente enquanto representação dos estados, colocando à margem toda e qualquer disputa de ordem social e, consequentemente, todo e qualquer partido.

Mas Republicano e Democrata não são partidos?

Sim, são partidos, mas antes de tudo são partidos que espelham a própria organização do Estado. Mais que partidos que possuem programas diferentes, pois ideologicamente não se diferenciam, são, acima de tudo, partidos que representam estados. Os Estados Unidos continuam até hoje divididos entre estados republicanos e estados democratas, sendo que dos 50, em apenas 13 a vitória em disputas eleitorais não está pré-definida e eventualmente um ou outro partido a obtém. Por essa razão, estes 13 estados são chamados de estados pêndulos. Com essa configuração, obviamente o candidato a presidente que obtém a preferência da maioria dos estados alcança também a maioria nas casas legislativas, assegurando-lhe governabilidade. Nas raras exceções em que ocorreu de um presidente não ter maioria em uma casa, tinha-a na outra. Ou seja, o vencedor leva tudo, ou, no mínimo, quase tudo.

Esta é a essência da estabilidade do presidencialismo norte-americano: a organização do poder enquanto representação dos estados e não o bipartidarismo. Os demais partidos que representam segmentos sociais e não a territorialidade estão colocados totalmente à margem do poder. A grande questão que se coloca é se este modelo sobreviverá e manterá sua estabilidade diante dos conflitos sociais cada vez mais candentes, decorrentes do declínio econômico e da desestruturação do sonho americano.  É esperar para ver.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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