O filme Estação do Diabo

A ação dos governantes filipinos contra seu povo em “Estação do diabo”, de Lav Diaz e uma exposição de quadros de Michelangelo em Pernambuco

Foto: Divulgação

Pois é lá no arquipélago das Filipinas que esteve pessoalmente o ditador Ferdinand Marcos e até hoje ainda continua a família Marcos, juntando com algumas outras famílias tão miseráveis e perversas como certas famílias do Brasil. E a arte cinematográfica, embora continuando a ser uma arte insegura, mas com cineastas grandiosos como Lav Diaz que faz filmes sem bitola. Isto é, não importa para ele o tempo de duração de um filme, mas o que ele pode dizer para denunciar o horror que esses ditadores conseguem fazer.

“Estação do diabo” (Ang Panahon Ng Halimaw) lançado em 2018 pelo cineasta Lav Diaz e agora através da Mubi, para mim me dá a sensação extraordinária de que depois de mais de 60 anos de atuação na crítica cinematográfica, ainda posso encontrar um novo prazer. Ver um filme como se fosse o último …

Uma obra que denuncia extraordinariamente a ação dos governantes contra seus cidadãos. Sim, contra, e não a favor dos filipinos. Um filme com um formato de poesia visual, que tem uma leveza e uma beleza incrível, mas sem fugir dessa beleza consegue nos chocar e ao mesmo tempo nos ensinar que não podemos nunca nos esconder em uma ilha que seja, para assim deixar de lutar contra esses verdadeiros criminosos invasores.

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Às vezes na minha vida eu penso que não quero mais trabalhar com cinema, mas uma obra como “Estação do diabo” me mostra que a surpresa nunca deixará de existir numa obra de arte verdadeira.

Se formos tentar marcar uma categoria artística para esse filme, seria próximo de uma ópera. Como na ópera, os intérpretes são atores cantores e assim é que vai acontecendo cada cena. Num clima sempre poético, no qual a poesia vem através de diálogos naturais comuns. O filme tem a duração de quase quatro horas, mas você o assiste com muita tranquilidade, mesmo que os momentos de angústia cheguem e nos atinjam pelo que estão falando. Desde os primeiros momentos, quando matam friamente um rapaz, até o final com outro brutal assassinato, há grandes choques, mas não como fazem os filmes hollywoodianos, que utilizam a violência para divertir. Cada cena é colocada para simplesmente mostrar o mal que aqueles dirigentes conseguem impor ao povo filipino.

Mas o arcabouço tem a vantagem da sobriedade, e lembra a sobriedade que o nosso Nelson Pereira dos Santos sempre soube instalar em seu cinema.

E mais uma vez referendamos essa nova forma de exibição através das plataformas como a Mubi e a Netflix, pois filmes como “Estação do diabo” dificilmente chegavam, mesmo para serem exibidos nos chamados cinemas de arte.

O cinema realmente é uma arte que ainda está se aprimorando, está crescendo como capacidade de penetração de nos contar certos assuntos. E cada filme ser produto de um artista como esse Lav Diaz. Porque o cinema industrial consegue apenas divertir, mas o cinema feito por artista exerce a função característica da arte. Divertir e conscientizar.

Olinda, 02. 06. 22

Michelangelo completo (conto)

Foto: Reprodução

Eu dormi hoje até onze horas da noite. E sonhei. À tarde. Eu estava em Roma com uma moça chamada Samantha. E visitando o vernissage de uma exposição, conheci um senhor que me ofereceu toda a obra de Michelangelo, completa. Esse senhor era um conhecido falsário em Roma e tinha conseguido a técnica de reprodução perfeita de quadros famosos. Eu estava rico. Ganhei uma grande fortuna. Milhões. E mesmo ouvindo vários especialistas em arte italianos, quis comprar os Michelangelos. E acertei então com o Governo de Pernambuco para cuidar do Museu de Arte Contemporânea (MAC-PE). E em primeiro lugar acertei com a Câmara de Olinda fechar o trecho da rua em frente ao Museu. Comprei todas as casas que ficam nesse trecho. E em cada casa iria instalar exposições permanentes. E consegui isso. A maior dificuldade não era artística, mas de circulação. Como fechando a rua, ficam duas entradas, tivemos que resolver se o Museu iria ter duas entradas. E ainda não chegamos a uma conclusão. Os quadros de Michelangelo, inclusive com a reprodução dos trabalhos da Capela Sistina, chegaram ao Recife. E realmente eram deslumbrantes, porque o senhor havia conseguido com o aproveitamento de toda tecnologia uma reprodução impossível de ser dita falsa. E então instalamos o Michelangelo completo numa das casas da área. O MAC-PE ficou então um maravilhoso museu e fazendo cobertura internacional. Inclusive um Museu de São Paulo acertou conosco uma exposição lá. Mas só poderia ser para alguns anos. Quem de outros Estados do Brasil que quisesse ver a exposição tinha que vir pessoalmente aqui. Então convidei o cineasta Fernando Monteiro para fazer um documentário da exposição e lançar esse trabalho num DVD. Disse a Fernando que ele tinha que imaginar uma realização capaz de provocar um deslumbramento no espectador. E que poderia contratar o fotógrafo de sua preferência, brasileiro ou estrangeiro. Enfim, no meu sonho vi o MAC-PE ser transformado numa obra quase tão famosa quanto o Musée d’Orsay de Paris.

E o público era enorme. Uma outra casa teria uma exposição que eu idealizei e que era com vinte retratos de Trudy, cada um feito por um artista pernambucano. Poderia ser também de qualquer outro Estado nordestino. A exposição se chamará Trudy e os sapatos. Cada quadro terá o tamanho de 140 x 200 cm.

Olinda, 11. 06. 22

P.S para o conto “Michelangelo” completo

O filósofo Walter Benjamin, que morreu com menos de 50 anos de idade tentando transpor a fronteira da França para a Espanha, fugindo dos nazistas alemães em 1940, é o filósofo que mais me preocupa, e quando eu ensinava na Católica de Pernambuco o que eu mais pensava em fazer era transmitir o conteúdo do ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Para mim, o grande teórico do cinema era realmente Walter Benjamin, pois ele colocava em questão a essência da arte e não as suas filigranas. Até hoje eu ainda penso assim. E o sonho de colocar Michelangelo no MAC-PE é somente a questão principal da autenticidade. Por mais perfeito que um Michelangelo esteja, colocado aqui numa sala especial é sempre uma reprodução e nunca a obra de arte. Os nus que Roberto Lúcio faz no seu ateliê da própria Rua do Amparo aqui em Olinda, daqui a 100 anos serão muito mais verdadeiros do que a mais perfeita reprodução de um Michelangelo com toda a mais maravilhosa técnica de reprodução. A aura continuará a existir nos nus de Roberto Lúcio, mesmo que as modelos nem existam mais.

Olinda, 12. 06. 22

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