O golpismo, a burrice pragmática e a coragem

O pragmatismo ladrão da classe dominante golpista exige, mesmo ele, algum planejamento estratégico e qualquer, ainda que mínima, proposta de continuidade, mesmo que dessa política destrutiva de morte. Acontece que a burrice impera, tornando-se a regra.

Em Guerras Híbridas, Andrew Korybko descreve as estratégias e os interesses que coordenam as formas pelas quais o deep state norte-americano – o gabinete constante por trás da fachada democrática dos EUA que opera e articula os empenhos dos financiadores do imperialismo desse país – promove a derrisão das democracias em países de capitalismo periférico e de estado forte, principalmente em regiões em que seu ímpeto gerencialista ganacioso parece ameaçado. Fomentam e hidratam as manifestações difusas para as quais convergem, imediatamente, as frustrações, anseios e desesperanças do povo dessas regiões. Aliado a isso, financiam as guerrilhas desarticuladas defensoras dos interesses dos mercados regionais e da formação de seus monopólios locais em forma de milícias, ao mesmo tempo em que atraem agentes burocráticos do estado comprometidos com a sua destruição e a descredibilização dos políticos tradicionais não alinhados. Nada de se espantar: tudo isso vimos aqui, de forma mais escancarada a partir de 2013.

Uma das consequências imediatas após a conclusão dos golpes híbridos é a desarticulação não apenas das lideranças e campos políticos a quem se destinam, mas da arena política integralmente, em sua dinâmica, suas formas e funcionamento; seus sentidos e fundamentos. Ocorre que os que se empenharam na manipulação do golpe e nele embarcaram tentam, maquiando a forma, se acomodar nas bases da superestrutura que maculou, quando percebem, assustados, que a mácula foi a ela fatal. Desesperam-se.

E quais a condições?

Não cabe aqui esgotar os motivos da descontinuidade e fragmentação da própria classe dominante nas economias de bases históricas colonizadas e posicionadas na periferia do capitalismo – trataremos especificamente disso em outro artigo. Importa saber, outrossim, que um dos elementos condicionantes dessa constante é o desencontro entre os interesses da classe dominante e de sua área de influência e o desenvolvimento da habilidade política em longo prazo, que se materializaria numa agenda de exercício de poder manifesta na sua responsabilização programática maior. Acovardada, preguiçosa, viralatista, imediatista e desesperada, a direita brasileira é capturada pela sua burrice estrutural e pequenez, sua nada refinada estratégia de desenvolvimento e leitura das correlações entre movimento e formação econômica, movimentação das classes antagônicas e programa para o depois.

Seria apenas o interesse na destruição, no ganho imediato, balizado no “salve-se quem puder”, no engordo da cifra e na transferência de riquezas e de capital o que os une? Em parte, sim. Contudo, o pragmatismo ladrão da classe dominante golpista exige, mesmo ele, algum planejamento estratégico e qualquer, ainda que mínima, proposta de continuidade, mesmo que dessa política destrutiva de morte. Acontece que a burrice impera, tornando-se a regra.

A burrice, nesse caso, apresenta elementos formantes mais ou menos delineáveis à distância.

Em primeiro lugar, a crença de parte dos oligopólios – particularmente os midiáticos – de que apenas a depreciação do nível de renda da classe trabalhadora e, por conseguinte, do tamanho da participação do estado na recomposição e acomodação da renda e na promoção do bem-estar social, forçando a desobstrução à expansão da hiperconcentração de riqueza e à estabilização do custo do trabalho se refletiria em investimento via mercado de ações. Nada mais pueril, pois, ao se desconsiderar as incertezas que a política traz ao setor financeiro, em médio e longo prazo, a própria compressão do valor do trabalho e, depois, dos salários nominais, não se considera observar como a própria direção econômica em que apostou, como esses mesmos elementos, portanto, se tornam entraves, impostos pela própria dinâmica do mercado ao fluxo “livre” de capitais que favoreça as economias periféricas. Não adiantou a reforma da previdência.

Em segundo lugar, a certeza da ignorância do povo e a fé na manipulação constante. Quando acreditam que a classe trabalhadora, carente, às vezes, de informação e alvo da desinformação, suportará os ataques sistemáticos que recebe sem algum tipo de reação, perdem de vista as linhas alternativas de resistência que podem surgir: contra a uberização do trabalho, contra o genocídio da população negra, contra o estado fascista, em favor do SUS etc. Mesmo que, em primeiro plano, não dialoguem e até pareçam rechaçar o ativismo tradicional via sindicatos e categorias organizadas, no fim, as causas profundas da mobilização que animam e direcionam esses movimentos são, em essência, as mesmas ou guardam latências íntimas. Não será suficiente nem eficiente a reforma trabalhista.

Além disso, a identificação da classe dominante, em sua apatia, em sua impossibilidade de determinação positiva, incapaz de encontrar como elemento arregimentador aquilo que faz e produz, a faz ser capturada por aquilo que lhe dá coesão: o recalque. Esse recalque é a certeza de que, sendo branca, masculina e publicamente heterossexual, nada de brioso, de grandioso e corajoso lhe é atributo; nada lhe é genuíno, original e devido. Ela sabe que roubou, matou, que espoliou trabalho, terra, cultura e posições através da violenta destruição e imposição de si. Muitas vezes, esse recalque determinou o embarque do microempreendedor que só ganharia com a expansão a atividade econômica propiciada pelos movimentos expansionistas e de investimento estatal direto e indireto dos governos Lula e Dilma no golpismo. O recalque o cegou, o desespero diante da perda do privilégio pelo nada que fez o moveu, o ressentimento e o medo de ter de se autovalorar para além de sua situação, o medo de ter de se reconhecer depositário de vantagens injustas sobrepôs-se aos cálculos, balanços, projeções que tinha – se tinha – diante de si. Preferiu falir. Não logra efeito a promoção da política do pós-verdade, pois esta se impõe.

Por fim, todos esses desencontros da direita refletem-se e são reflexos do menosprezo do papel da articulação política em seus termos e formas mais refinadas. Por desespero, por egoísmo, por “ingenuidade”, por má-fé ou tudo isso, a direita não sabe, não aprende e não terá condições de articular o depois. As lideranças de ocasião construídas por hora não articulam seus projetos, nomes, não têm como apresentar um programa para o país porque não o tem e nem podem tê-lo, já que é justamento para isso que foram engodadas pelo mel do tal deep state, Foram, coitados, abandonados à própria sorte, ao salve-se quem puder e têm de se haver com o monstro que alimentaram e os engolirá. O acordo nacional, com o congresso, com o Supremo, com tudo, não tem termo nem argamassa da grandeza, das causas. Falta-lhe a estatura política necessária a qualquer acordo.

A política é o que sabemos nós, que temos compromisso com a classe trabalhadora, as pautas dos movimentos sociais e, por isso, temos um projeto de nação. A eles, que se engulam; para nós, a coragem de se atirar sobre as nossas bandeiras em uníssono.

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