O que um presidente do Brasil deveria ter dito à Assembleia das Nações Unidas

A história da ONU é uma de moderadas concessões por parte das potências ocidentais e de árduas lutas dos povos, que tanto mais conquistaram. Esta é a história que deveria ser homenageada.

Abertura da 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas I Foto: UN Photo/Mark Garten

Na falta de um estadista democrata e solidário no púlpito e no comando do governo brasileiro, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), desafiada em seu 75º aniversário, foi inaugurada na segunda-feira (22) pela demonstração da urgência de luta: o discurso do atual presidente do Brasil. Em entrevista ao Meteoro, no mesmo dia, Lula reagiu ao acinte amontoado no discurso oferecendo um seu; uma luz no fim do túnel logo compartilhada por diversos meios sedentos de sensatez.

Nestes 75 anos de princípios e direitos ampliados através das lutas dos povos pela autodeterminação, por mais direitos e por uma paz justa e sustentável, Bolsonaro novamente escolheu ecoar a narrativa daqueles que são os maiores riscos à sobrevivência da ONU (a esperada verborragia pode ser lida lá fora, assim como uma das habituais apurações do que era verdade ou mentira). A entidade está combalida pela agressiva campanha de deslegitimação, especialmente por parte dos Estados Unidos e Israel, e a exorbitante queda das receitas (também politicamente motivada) afetando órgãos e agências essenciais como a Organização Mundial da Saúde, nestes tempos de pandemia, a UNESCO (Educação, Ciência e a Cultura), nestes tempos de crescente obscurantismo, e a UNRWA (de assistência aos refugiados da Palestina), que há 70 anos mitiga o sofrimento de mais de cinco milhões de palestinos expulsos de seus lares e descendentes.

A história da ONU, criada no pós-Segunda Guerra Mundial nos moldes da extinta Liga das Nações, é uma de moderadas concessões por parte das potências ocidentais e de árduas lutas dos povos, que tanto mais conquistaram. Esta é a história que deveria ser homenageada. Por exemplo, em 1960 a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos coloniais reconhecia que o processo de descolonização, só empurrado adiante pela luta anticolonial, era “irresistível e irreversível”. Até então, o princípio de autodeterminação era vago e a ONU herdara a controvérsia dos “territórios tutelados” pelo sistema de Mandatos da Liga das Nações. Quase um terço da população mundial viva em territórios colonizados. Logo, o movimento anticolonial, com apoio crucial da União Soviética e, a seguir, dos crescentes governos revolucionárias e outras nações agrupadas no Movimento de Países Não Alinhados (MNA), emancipou a questão e instituiu a descolonização, ainda a ser conquistada pela luta e não garantida pelo direito, como se vê em questões persistentes como a do Saara Ocidental, Porto Rico e Ilhas Malvinas.

Hoje, diante da gravíssima crise catalisada pela pandemia do novo coronavírus, problemas estruturais estão ainda mais evidenciados. Nem mesmo a saúde e a educação, a participação política, ou a igualdade e tantas outras promessas do quadro liberal que pauta os princípios da ONU estão garantidas. O imperialismo estadunidense e seus afiliados, como os atuais governos brasileiro e colombiano, o regime israelense e tantos mais, impedem a união das nações em prol da paz e dos direitos humanos com sua mera existência. Aprofundam-se desigualdades sociais, o empobrecimento e a precariedade das condições de trabalho, o racismo e a xenofobia e carências urgentes, como uma saúde pública de qualidade que dê conta da pandemia e das necessidades essenciais das pessoas, e ainda enfrentamos os riscos de guerras que se alastram a cada ameaça ou provocação por parte dos EUA e seus apêndices, seja na fronteira Brasil-Venezuela ou na Síria, no Iêmen, na Coreia, no Mar do Sul da China e além.

Enquanto defendemos a nomeação das brigadas médicas cubanas ao Prêmio Nobel da Paz por sua valentia humanista, salvando vidas pelo mundo especialmente em tempos de emergência, ouvimos o retorno ao passado na retórica antissocialista e reacionária —requentada do discurso de 2019, quando Bolsonaro atacou Cuba, Venezuela, o Foro de São Paulo e a própria ONU— de um presidente antipatriótico, antidemocrático, anti-povo e anti-verdade que degrada o próprio país e menospreza suas mazelas, com o desemprego aumentando quase tão assustadoramente quanto o número de vítimas da pandemia, na irresponsabilidade mórbida e criminosa do seu governo. A Amazônia e o Pantanal ardem na política de terra arrasada, enquanto o presidente diz o contrário e coloca o Brasil à venda e à disposição das ameaças de um seu Pompeo contra a vizinhança.

O discurso que devia ter sido

“O mundo precisa mesmo conhecer a verdade”, disse um Bolsonaro coroado pelas notícias falsas e despejando mentiras a cada sílaba. Lula, reconhecido internacionalmente pelo processo que liderou no Brasil, a árdua marcha adiante que, ainda em seu início, colocou em xeque a miséria do povo e a subserviência da nação aos interesses estrangeiros, leu o que seria o discurso de um presidente comprometido com os interesses de um Brasil ativo e altivo, na atual encruzilhada do mundo. Denunciou o desprezo bolsonarista pela vida, elencando as mais de 135 mil vítimas fatais e de quatro milhões de pessoas contaminadas por um vírus que encontra condições ideais no país —o descaso.

Lula anunciou as medidas daquele hipotético chefe de Estado e Governo: testagem em massa; recomposição do orçamento da saúde para salvar vidas; manutenção do auxílio emergencial de R$600,00 e o Bolsa Família; liberação de crédito pelos bancos públicos para pequenas empresas; retomada das obras paradas para impulsionar a economia e gerar empregos; restituição da credibilidade nas medidas sanitárias coletivas; “desmatamento zero” na Amazônia e no Pantanal, proibição de queimadas e redirecionamento dos quatro mil soldados destacados para provocar a Venezuela, no combate aos incêndios; prioridade aos povos indígenas nas ações emergenciais e respeito por seus territórios e culturas; desenvolvimento de tecnologias em prol da segurança alimentar no Brasil e no mundo; proibição do uso do território nacional para testes com insumos e sementes nocivos; retomada da reforma agrária e financiamento da agricultura familiar.

Fez ainda referência aos princípios e valores da ONU, lamentando a continuidade ininterrupta das guerras, a transformação do colonialismo em outras formas de dominação e exploração, como a especulação financeira e a concentração de capitais, a falta de acesso à educação e saúde pela maioria e o retrocesso nas relações de trabalho. “É vergonha das vergonhas: 800 milhões de crianças passam fome todos os dias, no mesmo planeta em que uns poucos privilegiados nem sabem como gastar ou sequer como contar suas inacreditáveis fortunas,” decretou.

Lula reforçou o compromisso do hipotético presidente com o combate à desigualdade e o racismo estrutural no Brasil, o patriarcado, o preconceito, a fome, a pobreza e o desemprego, e com o exercício pleno da soberania nacional “não para oprimir quem quer que seja, mas para promover a integração da América Latina, a cooperação com a África, relações econômicas equilibradas e democráticas entre os países, defender o meio-ambiente e a paz mundial.”

“O Brasil quer para si o que deseja para todos os povos do planeta: soberania, autodeterminação, acesso compartilhado ao conhecimento, às vacinas e medicamentos imprescindíveis, regras justas de comércio, ação internacional efetiva para o desenvolvimento e o combate à pobreza no mundo. O Brasil quer para todos democracia, paz e justiça.” E arrematou: “era esse o discurso que o Bolsonaro deveria ter feito se ele tivesse o mínimo de compromisso com a verdade e a soberania do nosso país.” Mas dia após dia, fica claro que por um governo deste, temos muita luta a travar. Por uma ONU respeitada, num sistema internacional democratizado, também.  

Assista à íntegra da entrevista de Lula:

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