O revés do isolamento

A conta chega mais alta para brasileiros e brasileiras que, infelizmente, estão sendo colocados contra a parede.

Ilustração: Éton

Estamos testemunhando no Brasil, desde o início da pandemia do coronavírus, uma queda de braço institucional entre instâncias federativas. As esferas de poder, de maneira voraz, digladiam-se em torno de um cálculo político árduo. A discussão sobre a saturação do sistema de saúde, combinada com uma abertura total ou parcial dos serviços tem ganho, semana após semana, capítulos cada vez mais dramáticos.

O mês de maio chegou ao fim e com ele perdemos uma batalha importantíssima: a do isolamento social. A narrativa que se sobrepôs foi a da reabertura da economia, que em muitos lugares sequer foi totalmente fechada. Plantões jornalísticos, entrevistas com epidemiologistas, experiências de outros países, projeções de casos, apelos de famílias enlutadas, estatísticas e mais estatísticas, esforços aparentemente inúteis quando colocados em perspectiva com a pressão exercida sobre estados e municípios para que o “comércio volte a funcionar”.

A instância de poder que dispõe de recursos econômicos e institucionais para coordenar ações econômicas e sanitárias de enfrentamento à pandemia e seus impactos é o Governo Federal. Porém, a pauta mais importante para o presidente neste momento é lutar contra o comunismo imaginário da Suprema Corte que supostamente ameaça a democracia brasileira, vociferando em defesa da liberdade de disseminar notícias falsas. A principal empreitada do planalto age em torno de interesses nada republicanos. E não há, no horizonte próximo, de mudança deste rumo.

O posicionamento presidencial sobre a pauta do coronavírus ignora qualquer pressuposto básico de combate ao contágio iminente ou mesmo de redução de danos causados. Ela também investe maciçamente na hipótese de que os governadores são os responsáveis pela crise. A horda bolsonarista repete o mantra de que apenas os estados que fazem oposição ao governo federal sofrem mais com o número de casos e de óbitos. A desinformação aqui atua lado a lado com uma política de subnotificação, sendo dificílimo mensurar qual o real status da doença no país.

A cobertura da imprensa, no que avaliamos até aqui, tem focado no aspecto equivocado sobre a decisão de reabrir serviços: o peso sobre o isolamento não pode recair unicamente sobre o executivo (seja municipal ou estadual), uma vez que há diversos setores (políticos e da sociedade civil) que influenciam a opinião pública e orientam o comportamento da população. A pressão para a abertura do comércio repousa sobre os ombros das bancadas legislativas, sobre lideranças religiosas, empresários, etc. Mas sobra responsabilidade também para blogueiros, influenciadores digitais (sic) e toda sorte de gente que gasta tempo em internet fantasiada de virologista.

O Brasil perdeu a oportunidade de implementar medidas de isolamento social e medidas de amortecimento econômico, está fadado a um cenário de carnificina, com mortes não apenas pela doença, mas pela saturação do sistema de saúde e pela pobreza. Quando finalmente o ritmo de contágio reduzir, teremos pela frente uma recessão econômica nunca antes vista. Autorizamos nas urnas uma agenda econômica capitaneada por Paulo Guedes, que leu Keynes 3 vezes no original e 8 livros sobre a reconstrução da Alemanha. Autorizamos nas urnas uma agenda econômica que prioriza a privatização, mesmo em contexto de crise sanitária.

Temos percebido que as regiões mais vulneráveis econômica e socialmente do país são as mais afetadas pela contaminação, e são justamente os que não dispõem de recursos (não apenas econômicos) para enfrentar a doença e seus impactos nocivos. Desde o déficit habitacional até o perfil das moradias à disposição da população mais pobre, a conta chega mais alta para brasileiros e brasileiras que, infelizmente, estão sendo colocados contra a parede. Não deveriam de forma alguma escolher entre trabalho ou morte. Embora essa lei sempre estivesse presente nas periferias do país, desde sua colonização até hoje, ela se manifesta da forma mais brutal.

Artigo elaborado em coautoria com Hesaú Rômulo, cientista político e colunista do Portal Vermelho

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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