O significado do ataque pessoal de Villa a Lula

Lula mostra que quando a realidade cobra decisões objetivas os brasileiros têm a oportunidade de ver quem é mesmo que o país elegeu para presidente da República. Só que isso traz implicações. E uma delas é a recorrente tentativa de representantes da el

''O erro repete-se sempre na ação, por isso deve-se incansavelmente repetir a verdade em palavras.''


 


                                                             Johann Wolfgang von Goethe



 


Uma entrevista do historiador Marco Antônio Villa ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 7 de abril passado mostra, mais uma vez, que a porção conservadora do pensamento brasileiro não fechou os olhos para a nova realidade da correlação de forças políticas que se formou com a eleição e a reeleição de Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República. O pomposo historiador — segundo o jornal ele é também professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), possui mestrado em Sociologia e doutorado em História Social pela USP, e é autor de 16 livros — disse que “Lula é inebriado por tudo o que é externo ao ato de governar, mas é avesso às obrigações executivas e montou um governo concebido para não decidir”. E decreta: “Nenhum presidente sobreviveu à história só com carisma.”


 


Para dizer que Lula tem uma antiga dificuldade de tomar decisões e jogar a culpa da crise aérea nas costas do presidente, Villa, induzido pelo provecto jornal controlado com mão de ferro pela oligarquia Mesquita, chega a ser desrespeitoso em algumas passagens da entrevista. “Lula não sabe tomar decisões, não fica confortável diante delas. É uma característica pessoal. Em 1980, por exemplo, sumiu de vista em dias decisivos da greve em São Bernardo do Campo. ‘Cadê o Lula?’, perguntavam todos. Estava em um sítio, perto de uma represa. Foram lá dar uma dura nele (sic) e ele reapareceu no dia seguinte, na assembléia da Vila Euclides. O jornal local estampou a manchete: ´Ele voltou!’”, disse o historiador sem citar uma vírgula que comprove a informação.


 


A proverbial capacidade de Lula dizer as coisas com simplicidade


 


A verdade é que Lula foi um dos principais artífices da onda de greves que varreu o país naquele ano. Já no dia 14 de janeiro de 1980, ele participou de uma reunião da Comissão Nacional da Unidade Sindical, que representava sindicalistas de todo o Brasil, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo para definir a luta por uma salário mínimo real e unificado, por garantia no emprego, por reforma agrária e pelo combate à carestia. Ali nasceu a idéia de um 1º de Maio unificado em âmbito nacional e a realização do 1º Congresso das Classes Trabalhadoras (Conclat) — que seria realizado em 1981 com a denominação de Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras.


 


No 1º de Maio de 1980, nos atos em todo o país um documento padrão foi divulgado, dando caráter unitário ao evento. Lula dizia que a realização do Conclat, em pleno regime militar, era uma aspiração legítima dos trabalhadores, uma vez que o governo permitira um evento semelhante para os empresários: o Congresso das Classes Produtoras (Conclap). Ele exercitava sua proverbial capacidade de dizer as coisas com simplicidade e clareza, e isso já irritava os engomados e as autoridades. Em assembléia realizada no dia 16 de março de 1980 no estádio da Vila Euclides, diante de 60 mil metalúrgicos Lula disparou: “Vocês que foram espezinhados, que sofreram durante 12 meses, dão hoje uma demonstração de que se alguma coisa tiver de mudar neste país vai mudar a partir dos metalúrgicos do ABC.” 


 


Lula dedicou-se integralmente aos preparativos da greve


 


Quando um grupo de empresários brasileiros insinuou a possibilidade de um acordo com base na defesa da empresa nacional, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema respondeu: “Os trabalhadores se dispõem a lutar ao lado do empresário nacional. Mas para isso é preciso que os empresários tirem a máscara e não paguem salários mínimos aos trabalhadores e que deixem de morar em palacetes enquanto a gente mora em favela, e deixem de comer peru enquanto a gente come ovo.” Lula jogava duro com os empresários, mas tinha bem definido quem era, naquele momento, o alvo principal: o governo do general João Baptista Figueiredo.


 


O representante do governo que estava na alça de mira de Lula era o ministro do Trabalho, Murillo Macedo. No comício do dia 16 de março de 1980, ele disse: “Vocês viram o ministro mentindo na televisão. Vocês viram ele fazendo uma média com a política salarial que veio arrasar com os trabalhadores. Vocês viram ele dizer que os trabalhadores tinham que ficar atentos àquilo que os seus dirigentes queriam. E vocês sabem o que os dirigentes sindicais daqui querem: o bem-estar de cada um dos trabalhadores de São Bernardo do Campo e Diadema.” Depois dessa assembléia, Lula dedicou-se integralmente aos preparativos da greve.


 


Vôos rasantes de helicópteros no estádio de Vila Euclides


 


A resposta de Murillo Macedo não tardou. “Pode parecer constrangedor passar para a história como o responsável pela interrupção da carreira de vários dirigentes sindicais. Porém, como empedernido defensor do processo democrático aplicarei a lei e cumprirei as decisões da Justiça”, disse ele no dia 27 de março de 1980. Apesar das ameaças, a greve, que começaria no dia 1º de abril, foi aprovada por mais de 70 mil trabalhadores reunidos em assembléia no dia 30 de março no estádio de Vila Euclides. No começo da greve, ainda na madrugada, Lula discursou aos metalúrgicos no auditório do sindicato. Pediu “cabeça fria” e transmitiu uma série de orientações que determinaram o comportamento dos metalúrgicos nos dias seguintes.


 


Na manhã do dia 2 de abril de 1980, 100 mil metalúrgicos reuniram-se na estádio de Vila Euclides para ouvir a decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de conceder um pequeno aumento salarial e de se declarar “incompetente” para decretar a ilegalidade da greve. Enquanto o advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, expunha o resultado do julgamento do dissídio, dois helicópteros da Força Aérea Brasileira (FAB), com soldados exibindo metralhadoras, começaram a sobrevoar o local. “Permaneçam calmos. Isso é só intimidação”, pediu Lula. No dia 3 de abril de 1980, Murillo Macedo, enquanto almoçava pato com laranja no restaurante La Casserole, no Largo do Arouche, região central da cidade de São Paulo, disse que a polícia reprimiria os “grevistas”.


 


A sentença do historiador-caluniador ao país  


 


Era apenas o início de uma luta que teria mais lances de intimidações, mais manobras da Justiça do Trabalho e mais ameaças por parte das autoridades. Os empresários casaram com perfeição a tática de endurecer as negociações e recorrer às forças de repressão comandadas pelo governo para atacar a greve. No dia 17 de abril de 1980, minutos antes de assinar a portaria que decretou a intervenção no sindicato — que se desdobraria na prisão de Lula e de outros dirigentes sindicais —, Murillo Macedo recebeu o vice-presidente do sindicato, Rubens Arruda. “Ministro, a intervenção está assinada?”, indagou. Murillo Macedo respondeu: “Não, senão não estaria recebendo um dirigente sindical.”


 


A greve também contou com muita solidariedade. E Lula, ao contrário da afirmação leviana de Villa, coordenou cada passo daquela heróica batalha. Mais uma vez, ele precisa de solidariedade. Em outra passagem da entrevista, o historiador-caluniador diz que o presidente “gosta do mundo palaciano em que presidentes jamais são vaiados e exerce uma ‘Presidência do Espetáculo’ que até lembra o Absolutismo, em que tudo é revelado”. “Não à toa Lula se cerca de colaboradores com atribuições de primeiros-ministros, como José Dirceu, no primeiro governo, e Dilma Rousseff, agora. Presidentes que não fugiram de decisões não se cercaram de gente forte assim. A dificuldade para decidir, em um presidente, não é só curiosidade. O país precisa de administradores reais”, sentenciou Villa.


 


O discurso de Villa lembra o da velha UDN, que se auto-intitulava ''o partido da eterna vigilância'' e surgiu da união de lideranças políticas estaduais da República Velha, no dia 7 de abril 1945 — coincidentemente a mesma data em que O Estado de S. Paulo publicou a entrevista do historiador 62 anos depois. A data de fundação da UDN foi cuidadosamente escolhida para lembrar outro 7 de abril — o de 1831, quando D. Pedro I abdicou. O partido — algo parecido com o PSDB — reuniu adversários dos tempos imperiais e da República Velha com a finalidade única de derrubar Getúlio Vargas e seu governo progressista. Villa parece estar naqueles tempos e vê a grande massa de brasileiros pobres como seres primevos por serem negros, índios, mestiços, despossuídos a ponto de não ter direito sobre seu próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante.


 


Herança colonial que impregna a alma do país


 


Em dois ou três séculos, pouco mudou na essência do modo como a elite e o povo se vêem e se relacionam. Uns poucos continuam abusando de seu poder inchado, sabotando a trama social existente no país e nutrindo ódios de classe. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas pouco mais de sete décadas — aí pelos anos 30 — começamos a projetar de fato o rompimento com a herança colonial que impregna a alma do país, debatendo e aperfeiçoando um projeto contemporâneo e factível de sociedade. Sofremos muitos reveses e, por isso, o projeto desenvolvimentista e democrático de sociedade ainda é algo que está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade coesa, fundada na ética, disposta a erigir sistemas que sustentem a longo prazo o desenvolvimento econômico e a justiça social.


 


É neste contexto que se encaixam historiadores conservadores como o entrevistado por O Estado de S. Paulo no dia 7 de abril — intelectuais que reagem ao menor vestígio de riscos para o poder da oligarquia, como o representado pela eleição e reeleição do presidente Lula. Entre o esforço para desqualificar um presidente que veio de fora dos quadros da elite, e a defesa dos iluminados que sempre mandaram e são os responsáveis pelo atraso e pelos profundos problemas do nosso país, eles não têm dúvida sobre o caminho a escolher, e não hesitam em colocar-se de joelhos perante aqueles que, aos seus olhos, nasceram para governar e colocar o povo no lugar subordinado de sempre. Mesmo que, para isso — sendo historiadores profissionais e formados por universidades notáveis — precisem torcer e retorcer os fatos.


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor