O tema é o meio ambiente, mas a encíclica condena o capitalismo

Aparentemente a encíclica Laudato si’ (“Louvado sejas!”, com o subtítulo “Sobre o Cuidado da Casa Comum”), recém-divulgada pelo papa Francisco, trata da questão do meio ambiente. Mas seu tema é mais abrangente e contém uma veemente condenação do capitalismo financeiro dominante.

Uma encíclica é um dos mais importantes documentos da Igreja Católica. Através dela o papa se dirige a bispos, sacerdotes e fiéis e fixa a posição oficial da Igreja a respeito de algum tema.

Neste sentido, a encíclica indica uma revisão profunda da posição da Igreja e supera o conservadorismo predominante até o papado de Bento XVI, e que foi esteio do neoliberalismo hegemônico desde a década de 1980.

O papa Francisco não usa meias palavras na avaliação profundamente negativa da crise contemporânea. Emprega uma palavra forte para os religiosos e define como “pecado” as posições predominantes.

A crise ambiental deriva, assegura, da profunda crise social, econômica e moral do capitalismo. “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental”. E volta-se contra o principal pilar do sistema, a propriedade privada, e diz: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada”, salientando “a função social de qualquer forma de propriedade privada”.

O abrangente diagnóstico feito pelo papa chama a atenção. A crise é social, ética, econômica, antes de ser ambiental. E afeta principalmente os pobres em todo o mundo. “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos Terra”, diz, citando o bíblico Genesis. É como se ele apontasse o metabolismo entre ser humano e natureza apontado pioneiramente por Karl Marx. “Nada deste mundo nos é indiferente”, diz o papa.

A crise decorre da maneira de viver e do modelo de desenvolvimento vigente, pensa. Chamam a atenção dois aspectos: a rejeição à lógica financeira predominante e a condenação, clara, do desemprego e da precarização do trabalho que decorrem dela.

A lógica e o modelo de desenvolvimento são garantidos institucionalmente pela íntima associação entre o poder político e o poder do dinheiro, e isso corrói toda iniciativa que tenha valor coletivo. Este é o sentido maior da mensagem do papa. A busca desenfreada do lucro a todo custo anda de mãos dadas com o individualismo desenfreado de nosso tempo. Nestas condições, diz, a falta de cuidado com o semelhante é correlata à igual falta de cuidado com a natureza ou qualquer outra coisa que não seja fonte imediata de lucro.

Assim, ele condena o favorecimento privilegiado dos interesses dos banqueiros, a ação socialmente irresponsável de multinacionais, o monopólio da venda de semente por empresas monopolistas, a privatização de serviços públicos fundamentais (como o fornecimento de água, por exemplo), a concentração da posse da terra e a consequente proletarização, precária, dos camponeses,

O papa exige que o centro das considerações na defesa da natureza seja a valorização da vida humana, consequente com a tese da unidade entre a natureza, o homem e todos os demais seres vivos. A vida humana deve ser protegida contra a degradação.

Isso impõe, diz, citando uma encíclica anterior (de 1991) de João Paulo II, “mudanças profundas” na maneira de viver, de produzir e de consumir e nas “estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades”.

No debate, que já dura décadas, a respeito da responsabilidade sobre a limpeza da atmosfera e eliminação dos gases do efeito estufa, emite um julgamento claro e cristalino: cabe aos países industrializados o custo dessa limpeza. São países que há duzentos anos poluem a atmosfera e cabe a eles a responsabilidade maior pela sua limpeza. É preciso, pensa, uma corajosa redução nos níveis de consumo nos países ricos em benefício do desenvolvimento dos países pobres.

A pobreza deve ser erradicada e isso só pode ser feito pelo desenvolvimento e criação de oportunidades de uma vida digna para todos, diz, revelando a adesão à tese de que “há responsabilidades comuns, mas diferenciadas”.

Os países “que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram”, diz, citando uma Carta Pastoral de 2012, da Conferência Episcopal da Bolívia (2012)

A ideia de que “tudo está estreitamente interligado no mundo” leva ao “convite” à busca de “outras maneiras de entender a economia e o progresso” e do “valor próprio de cada criatura” em busca do “sentido humano da ecologia”, afirmando “a necessidade de debates sinceros e honestos”. Ele se refere à “grave responsabilidade da política internacional e local” e condena “a cultura do descarte”, propondo um “novo estilo de vida”.

A consequência da lógica financista predominante, que favorece o lucro de poucos, é a cultura do descarte que transforma a Terra, “nossa casa”, em “imenso depósito de lixo”. Cultura do descarte que transforma em lixo a natureza e os demais seres humanos que não fazem parte do festim dos ricos.

O papa manifesta uma opinião prudente sobre o “aquecimento global”. O clima “é um bem comum”, diz. É um sistema complexo e, embora a ação humana tenha efeito sobre ele (sobretudo a poluição dos últimos dois séculos – os séculos, convém lembrar, de predomínio do modo de produção capitalista) há outros fatores naturais que não podem ser desconsiderados, como “o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar”.

De todo modo, pensa, é preciso mudar “estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam”. Neste particular ele condena de maneira clara o “modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis”.

Sem descuidar da questão do “aquecimento global”, o papa enfatiza os efeitos nocivos, que atingem a todos, da poluição local, que degrada a vida nas grandes cidades e nos campos “com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas”.

Ele fala na “perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil” e acusa aqueles que “detêm mais recursos e poder econômico ou político” de “concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas”.

O papa não se ilude; a intervenção “humana” está quase sempre subordinada “ao serviço da finança e do consumismo”, fazendo com que “esta Terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta”.

A encíclica que, diz o noticiário, foi escrita pessoalmente por Francisco, cita as “gravíssimas desigualdades” geradas pela busca desenfreada do lucro que joga sobre os ombros do “resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental”.

Em suas considerações, o papa inclui as condições de trabalho, crescentemente degradadas nos tempos de predomínio neoliberal. E que geram “exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e de outros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida”.

Ele revela pessimismo em relação aos encontros internacionais, de cúpula, que tratam da crise ambiental. E identifica, neles, a verdadeira queda de braços que ocorre entre os países “do Norte”, ricos, desenvolvidos e industrializados, e os países “do Sul”, marcados pela pobreza e pela busca do desenvolvimento para vencê-la. Com efeito, diz, há uma verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, “ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcional dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países”.

Por isso, diz, é preciso “que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável”. Há o perigo, diz, de “impor aos países de menores recursos pesados compromissos de redução de emissões comparáveis aos dos países mais industrializados” É uma imposição que “penaliza os países mais necessitados de desenvolvimento” criando “nova injustiça” a pretexto do cuidado com o meio ambiente.

Assim, vê a humanidade em uma “nova era”, colocada “diante de uma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias”.

O papa saúda a todos estes progressos. Mas alerta: “o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional”. Os efeitos da aplicação desse modelo podem ser vistos “na degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões”. Esse modelo perverso condiciona “os estilos de vida e orienta as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder”.

O diagnóstico é direto: “o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social”, mas leva a um “superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora” sem criar “de forma suficientemente rápida, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos”.

Estas são “as raízes mais profundas dos desequilíbrios atuais, que têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e econômico”.

A solução não virá através do “mercado”, pensa. Ele rejeita a tese dominante que deixa à “mão invisível do mercado” a regulação da economia “porque os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza trazem danos inevitáveis». E pergunta, relacionando estes males: “se não há verdades objetivas nem princípios estáveis fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção?”

Por isso, diz, é preciso com urgência “avançar numa corajosa revolução cultural”, sendo “indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade de outra forma”; “não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo”. E diz esperar o “desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos”.

As necessidades das pessoas, de todas as pessoas, precisam ser postas acima da busca desenfreada do lucro, sugere. E isso impõe relações de trabalho que respeitem a dignidade do trabalhador.

A “realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade econômica, continue-se a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos”, diz a encíclica.

E defende o direito, quase a obrigação, dos governos de intervir na economia para regular a ação do capital e frear a ganância desenfreada que prejudica a todos, aos povos, aos trabalhadores e ao meio ambiente, em benefício de uma minoria extrema que acumula riquezas de forma inaudita.

“As razões pelas quais um lugar é contaminado exigem a análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade”, afirma o dirigente católico.

E insiste: “Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, trabalhistas, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente”.

O papa rejeita, sem meias palavras, o “crédito de carbono” e outros mecanismos de financeirização da questão ambiental.

São formas, é preciso dizer (e isso não está na encíclica!), de submeter à ganância do capital novas fronteiras da natureza, levando a formas enganosas mas de grande efeito publicitário que, ao invés de garantir a defesa da natureza, servem apenas para propiciar lucros elevados para os especuladores.

“A estratégia de compra-venda de créditos de emissão pode levar a uma nova forma de especulação”, diz a encíclica. Nova forma que não “ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes”, sendo apenas uma “solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente”.

Uma das conclusões da encíclica reforça a condenação papal do “mercado divinizado” e das imposições financeiras. “A proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender”, afirma.

A situação atual requer, diz, a adoção de uma nova “modalidade de progresso e desenvolvimento” que corrija “a disparidade entre o excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso investimento para resolver os problemas urgentes da humanidade”. É preciso, diz, “redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e econômico que não deixe um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não pode ser considerado progresso”. “O mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas”.

A leitura da encíclica Louvado seja! é surpreendente e instrutiva. Ela mostra que aqueles que lutam em defesa do meio ambiente, contra o neoliberalismo e por novas relações humanas e pela conquista de um novo limiar civilizacional, ganharam um forte aliado: o papa Francisco. Laudato si’!
Leia aqui a encíclica, em português:

http://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf

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