O Testemunho de Berthier

Impressionou-me o trabalho do historiador gaúcho, já falecido, Décio Freitas sobre a epopéia da Revolução Cabana. O livro "A Miserável Revolução das Classes Infames" têm como referência as cartas de Jean-Jacques Berthier para um irmão que morava na França.

Transcrevo alguns trechos do texto intitulado "Breves considerações sobre a recente revolução ocorrida na Amazônia" e provavelmente fora escrito depois da ocupação de Belém por Soares Andréa. Fica claro que Berthier se empenha em contraditar opiniões de revolucionários europeus que realizaram críticas aos insurgentes amazônicos:

"A revolução amazônica recentemente derrotada em Belém(…) despertou atenção muito considerável nos círculos revolucionários europeus, que viam nela a possível construção, no Novo Mundo, de uma sociedade em que os homens de fato pudessem ser felizes, um ideal pouco plausível no Velho Mundo, após a momentosa derrota da revolução na França. Assim como despertou entusiasmo quando os amazônicos conquistaram o poder em Belém, sua derrota desperta hoje agudo pessimismo quanto a possibilidade de que se possa instaurar a república da felicidade no Novo Mundo, apenas pelo fato de que aqui os homens são muito menos ilustrados do que no Velho Mundo.

O país amazônico(…), não quis após a Independência submeter-se ao governo de um membro da dinastia que o dominara cruelmente durante séculos, tanto mais que tal governo se exerceria sem qualquer liberdade para as províncias, tornando-as escravas de uma única região centralizada na capital, o Rio de Janeiro. Os habitantes do país amazônico almejavam que o Brasil, uma vez independente, assumisse forma republicana, organizando-se a administração pelo sistema de federação preconizada por Graccus Babeuf, que, por sua vez, se inspirou nos moldes criados pelos virtuosos fundadores da república americana. Dada a resistência dos povos amazônicos a um império sob o jugo de um imperador estrangeiro cujo absolutismo se escondia sob mantos constitucionais, o governo do Rio de Janeiro contratou mercenários ingleses para esmagar a resistência, o que se fez através do massacre, no porão de um navio, de centenas de sans-cullotes.

Os delegados do imperador absolutista submeteram o país amazônico a uma desalmada opressão que descortinava um futuro de humilhação e pobreza, em condições ainda piores que a dos tempos coloniais. Os combatentes da revolução(…), chamavam-se cabanos, por isso que habitavam miseráveis cabanas nas matas, embora fosse através da força de seus braços que no passado sempre se extraíra a riqueza do país amazônico(…).

Devo expor as causas que determinaram a sucumbência da revolução amazônica. Destaca-se dentre elas a posição geográfica de sua capital, Belém. Olhe-se no mapa e iniludivelmente se verá que ela é o veículo de comunicação entre o país amazônico e o mundo. Através da cidade entram ou saem os homens quanto as mercadorias. Ela é por isso refém de quem dominar o oceano, e este os revolucionários não dominavam, nem podiam dominar, porque lhes faltava os recursos materiais necessários(…). Os revolucionários fizeram prodígios de heroísmo, mas não lograram romper o cerco fatal, devendo por isso retirar-se da cidade, rumando para a selva.

No seu deplorável opúsculo sobre a revolução amazônica, o senhor Étienne Cabet atribuiu a derrota da revolução amazônica à "inépcia, covardia e corrupção" de seus chefes. Refere-se à "mesquinha ambição pessoal" que os levou a disputas divisionistas, enfraquecendo a revolução (…).

Pratica-se injustiça ao tachar de ineptos os chefes da revolução amazônica, pois na condução de quase todas as operações militares obtiveram sucesso comparável ao dos chefes mais capazes da Europa no passado remoto ou no tempo presente, levando sempre a melhor sobre o inimigo. O último presidente revolucionário, Eduardo Angelim, mostrou-se general dotado de fulgurante gênio militar, afora destemor moral que autoriza outorgar-lhe o estatuto de herói. O abandono de Belém, quando do último assédio da esquadra imperial, não poderia ser visto como covardia. Dada a insustentabilidade de sua posição, fez recuo tático destinado a refazer força nas matas, onde concebia empreender guerra das emboscadas, nas quais se mostraria talvez invencível se o não houvesse prostrado morto a mão traiçoeira de sicários a serviço do absolutismo (…).

As maiores vítimas do insucesso revolucionário são os que desejavam e necessitavam seu sucesso, a multidão de pobres desesperados, submetidos a séculos de sofrimento desde que os europeus ocuparam suas terras, apoderando-se de todos os frutos dela. Os brancos do país amazônico sempre terão a oportunidade de acomodar-se à ordem existente, mas não assim os desgraçados, índios e negros. Neste continente, para ser feliz é preciso nascer com a pele branca.

A nós europeus, falta-nos autoridade moral para repreender estes povos por seus atos. Também é insensato imaginar que nossas luzes possam ter alguma valia para orientar os esforços destes nativos para a conquista da felicidade(…)”.

Sabe-se, com rigor documental que Berthier, depois da ocupação de Belém pelas tropas imperiais, refugiou-se no quilombo de Raimundo Gomes, no Maranhão, e tomou parte como combatente na Balaiada onde tombou com as armas na mão.

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