“O Verde Está do Outro Lado”: Empresas ricas e povo sem água

Projetos neoliberais que engendraram a privatização da água no Chile e no Brasil geraram altos lucros às concessionárias e crise hídrica no campo

Em boa hora o espectador brasileiro pode checar o que lhe prometem os vendilhões neoliberais e o que de fato recebe. Não demora para descobrir que ao invés de solução foi vítima de tremenda falcatrua. E se verá sem os meios de sustentação que levou décadas para construir. Tal é a avaliação que o cineasta chileno Daniel A. Rubio lhe permite ao assistir seu documentário “O Verde está do outro lado”. Com imagens a registrar o que ocorreu nos meados das décadas de 70 no Chile do ditador Pinochet (1974/1990) e no Brasil da Ditadura Militar (1964/1995). Eram os primórdios do neoliberalismo como suposta “solução para o Mundo”.

Um de seus principais teóricos era o economista estadunidense Milton Friedman (1912/2006), ultradireitista, que na época consolidava suas teorias (Capitalismo e Liberdade, 1962), junto aos governos direitistas. Influenciado por seu mestre, o conservador anglo-alemão Friedrich Hayek (1899/1992), autor de “A estrada da Servidão (1948), incluía em suas ideias a privatização do Estado para “destravar o capitalismo”. E contava com apoio do presidente dos EUA (1981/1989), o ex-ator de Hollywood Ronald Reagan (1911/2004) e da primeira-ministra conservadora da Inglaterra (1979/1990), Margareth Tatcher (1925/2013).

Em meio aos seus desmandos, Pinochet (1915/2006) foi um dos primeiros a adotar seu projeto neoliberal. E desta forma abriu caminho para que seus ex-alunos na Universidade de Chicago, os chicagos-boys, executassem suas teorias econômicas. Entre suas experiências estava a almejada privatização do abastecimento d´gua nos centros industriais chilenos. O que foi feito na cidade de Petorca, a 200 quilômetros da capital, Santiago, em 1975. E a água tornou-se um bem coletivo administrado por uma concessionária que deveria abastecer a população e a indústria.

Pinochet aderiu ao neoliberalismo

Pinochet aderiu à incipiente onda neoliberal que visava – e continua a fazê-lo – entregar empresas estatais, reservas minerais e áreas estratégicas do país ao grande capital. Também o ditador General João Batista Figueiredo (1918/1999), presidente de plantão (1979/1985) absorveu o projeto neoliberal. Seu campo de experiência foi a cidade baiana de Correntina, em 1980, a oeste da capital Salvador. A exemplo de Pinochet, Figueiredo optou por privatizar o abastecimento de água para os consumidores da Bahia. E o concessionário ficou livre para explorá-los.

Ao longo de 71 minutos, Rubio alterna sua narrativa entre o Brasil e o Chile. Tanto em um quanto no outro há predominância da agricultura familiar. Os pequenos produtores moram nas proximidades da floresta, dos rios e das estradas para cultivar e transportar sua produção de hortaliças, grãos e frutas. Daí a importância da água a baixo custo para eles. Qualquer aumento feito pela concessionária no preço da água impacta o custo final de seu produto. De forma didática, Rubio põe o espectador no centro das barreiras criadas pelas concessionárias. Elas não são apenas protegidas, pois o governo não as fiscaliza, mas poderosas e lucrativas.

Numa das impactantes sequências deste “O Verde está do outro lado”, a câmera de Rubio flagra o caminhão-pipa de uma delas saindo de uma trilha no meio do mato para burlar a vigilância dos agricultores. A explicação para tal subterfúgio é motivada pela opção da concessionária. Ao invés de abastecer a lavoura e as casas dos usuários, ela prefere atender os grandes consumidores de água. É como diz um pequeno agricultor chileno: “A empresa desviou a água e deixou secar o rio que abastecia a população e suas famílias”. É a busca do lucro acima de tudo.

Brasileiros vão às ruas protestar

Tais manobras terminam por conscientizar os lavradores sobre a necessidade de resistir e se organizar para não serem sacrificados. “A água no Chile é propriedade privada. Não é para atender os chilenos”. E desta forma, chegaram à conclusão de que as leis aprovadas pela Câmara dos Deputados não eram para favorecê-los e sim às concessionárias. E devido ao seu poder financeiro terminavam por controlar o voto dos parlamentares. “Se a lei fosse feita por nós, o resultado seria diferente”, explica o mesmo agricultor que cuida da lavoura com a família.

Contudo, se com os agricultores chilenos a percepção da fragilidade política exigia mudanças rápidas, seus companheiros brasileiros se valem da passeata para não perder suas pequenas áreas de plantio. A dupla de agricultores Andreia e Glauber Braga, de Correntina, lançam palavras de ordem ao longo da passeata pelas ruas. “A água é para a vida! O que a gente quer é isso! Respeite o nosso povo!” Sua revolta foi provocada pelos vereadores que votaram a primeira vez contra a privatização do sistema de abastecimento da água do município. Mas que na segunda votação frustraram os agricultores. “A soberania do povo foi desrespeitada”, desabafa Andreia.

Os prejuízos causados pelas concessionárias do abastecimento da água às comunidades rurais e pequenos e médios municípios não se restringem à manipulação criminosa. Seus efeitos se estendem ao não tratamento de rios e córregos para evitar poluição e lixo que terminam contaminando-os. Não bastasse, matam os peixes e secam a vegetação às suas margens. E com isto toda a área circundante se transforma num deserto e os pássaros somem. Não se trata de apenas um risco hídrico, mas sobretudo ambiental, pois abre caminho para queimadas por quilômetros e quilômetros pondo em risco fauna e flora de toda uma região.

Chicagos-boys seguem Friedman

Percebe-se nesta contextualização o quanto os EUA orientaram a política de abastecimento d´agua no Brasil e no Chile. E o quanto as concessionárias tiveram liberdade para administrar seu lucrativo negócio, sem interferência ou fiscalização que as impedissem de mudar os termos das concessões. Ao alternar sua narrativa desde o início entre um e outro país, Rubio permite ao espectador entender a semelhança entre os modelos de concessão. E que ele ainda não se esgotou, porque o neoliberalismo não retrocedeu, pelo contrário, engendrou o monopólio dos conglomerados.

Não é preciso ir longe, a primeira e óbvia constatação é a persistência dos chicagos-boys em seguir a ideologia e as ideias de seu mestre Milton Friedman. Não à toa o ministro da Economia do Governo Bolsonaro, Paulo Guedes, é um deles, pois foi seu aluno na Universidade de Chicago Vê-se como o repete pela defesa das privatizações das empresas estratégicas nacionais como a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Eletrobrás. Empresas estatais que cresceram e se fortaleceram com seus próprios métodos, sistemas administrativo-financeiros e tecnológicos que renderam e ainda rendem bilhões aos cofres do Estado. Não é milagre.

Isto no país do chamado capitalismo subsidiado, pois os chamados empresários nacionais não são magnatas independentes só avançam se amparados pelo Estado. E para eles sempre haverá, como se vê no governo deste turno, investimentos subsidiados às custas de quase 30 milhões de desempregados. Daí o interesse em internacionalizar ou entregar patrimônio nacional aos conglomerados estrangeiros, como se o Brasil estivessem em liquidação. Nenhuma estratégia para transformar o país numa superpotência nos próximos 10 anos. E sair da 8ª para a 5ª posição.

Aposentadoria privada não garante o futuro

Sua ânsia em desmantelar o sistema de aposentadoria dos trabalhadores é tal insistência que propõe a criação da aposentadoria privada. E sem a contrapartida de seus empregadores. E o pior nenhum jovem terá a garantia de que ao se aposentar terá as contribuições acumuladas à sua disposição. Isto porque não se mencionou até agora qual instituição será a seguradora de última instancia em caso de fusão ou falência do banco no qual fez seus depósitos por mais de quarenta anos para sua aposentadoria. Será lamentável, quem engendrou o plano já terá se esfumaçado. “E não é por ser lei que estará certo”, como diz Andreia.

Como se percebe, este O Verde Está do Outro Lado” amplia a percepção do espectador para além de seu tema central. Isto porque está centrado na exposição dos malefícios do neoliberalismo extremo que perpetua e fragiliza os países em desenvolvimento. E mais: empobrece os trabalhadores, a juventude e as mulheres e atinge os LGBTs, a ciência, a tecnologia e a cultura de forma planejada. Não é só uma luta contra os segmentos de esquerda, democratas e comunistas, é a antevéspera do entreguismo puro e simples. Só a democracia e a unidade irá superá-lo.

Enfim, o formato e a estética deste documentário-político tornaram-no múltiplo em sua proposta visual e de conteúdo e mensagem. E ao optar por não utilizar narração e criar frases e palavras de ordem deixou a cargo do espectador preencher o vazio. Mais ainda ao centrar sua narrativa em poucos camponeses chilenos e brasileiros. Assim, amplia o impacto do documentário direto, cujo tema é contemporâneo e situa-se no combate ao neoliberalismo, na defensa do ecossistema e alerta para os males da privatização cujo objetivo é tão só entregusita e ideológico.

O Verde Está do Outro Lado.
Documentário-político. Chile. 2019. 71 minutos. Trilha sonora: Leandro Estevão, Levi Estevão. Montagem: Daniel A. Rubio/Fred Silviero. Fotografia: Daniel A. Rubio/João de Souza. Roteiro/Direção. Daniel A.Rubio.

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