Os camponeses, o Partido e a Guerrilha do Araguaia

À Edite, Pedro Carretel, Alfredo, Luís Vieira, Juarez, Jair, Levy, Batista, Luíz Viola, Joaquim e Lourival – camponeses guerrilheiros mortos no Araguaia. Mártires do povo brasileiro.

Nestas últimas semanas dois acontecimentos ajudaram a jogar mais luzes sobre o movimento guerrilheiro ocorrido na região do Araguaia entre 1972 e 1974. Um deles foi o julgamento do processo de anistia para os camponeses vitimados pela repressão policial-militar no período. O outro foi a abertura dos arquivos do famigerado major Curió, matéria publicada em “O Estado de São Paulo”.


 


 



Pelo menos duas novas informações vieram à tona sob fatos que já tínhamos fortes indícios que teriam ocorrido. A primeira delas diz respeito às execuções dos combatentes aprisionados. Agora temos um número mais exato delas. Foram revelados os nomes de mais 16 guerrilheiros friamente executados depois de terem sido presos e interrogados. Isso elevou o número para 41 pessoas assassinadas daquela maneira. O que não significa que outros tantos guerrilheiros não tenham sido imediatamente executados depois de presos em combate.


 


 



Através do Dossiê Curió tivemos maiores detalhes das atrocidades cometidas pelas Forças Armadas, como a cabeça decepada do líder estudantil Antônio Guilherme Ribas. No Araguaia ocorreu uma política de extermínio que lembrou muito o massacre ocorrido na guerra de Canudos. O fato de as informações terem sido dadas por um oficial do exército, diretamente envolvido na repressão, dá a eles um valor especial. Afinal, Curió é agora um réu confesso. Que a justiça brasileira faça a sua parte.



 


 


A segunda informação, trazida pelo julgamento e pelo dossiê Curió, se refere ao grau de participação dos camponeses na guerrilha. Desde a divulgação do Relatório de Ângelo Arroyo, sub-comandante da guerrilha que havia escapado do cerco do exército no início de 1974, ficamos sabendo da adesão de onze camponeses à luta armada e o apoio de 90% da população. A visita dos familiares dos guerrilheiros mortos à região em 1979 – e depois as inúmeras matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas – confirmaram a simpatia da população pelos jovens guerrilheiros. Muitos deles, como Osvaldão e Diná, viraram verdadeiras lendas populares. Contudo, o temor de represálias por parte das Forças Armadas – recém saídas do poder – dificultou muito o desvendamento completo da relação estabelecida entre os camponeses e os guerrilheiros. Somente agora o medo parece se dissipar e a verdade surge com maior vigor.


 


 



Os últimos acontecimentos confirmaram o relatório Arroyo. Mais do que isso, eles nos dizem que a adesão dos camponeses foi maior do que se sabia até então. Segundo os documentos de Curió, o PCdoB teria recrutado para guerrilha 20 habitantes locais – e não 11 como se pensava. Segundo o “Estadão” o número de combatentes teria chegado a 98, que contavam com o apoio logístico de outros 158 moradores. Estes recebiam os guerrilheiros em suas casas, alimentava-os, avisava-os sobre a presença de tropas na região, recusavam-se a prestar informações ao Exército e defendiam a guerrilha em locais públicos. Um número menor chegou a fazer trabalho de espionagem, transmitir recados e até mesmo participar de pequenas ações militares.


 


 



A maioria desses apoiadores foi presa e barbaramente torturada. Cerca de dez camponeses morreram lutando ao lado da guerrilha – uma grande parte deles aprisionada e executada friamente. Por sinal, o primeiro prisioneiro assassinado pela repressão foi o barqueiro Lourival Paulino e Moura. Ele pertencia, segundo Curió, ao grupo de apoiadores fortes da guerrilha.


 


 


Araguaia: um foco?


 


 


No final da década de 1970 era predominante a opinião de que a Guerrilha do Araguaia havia sido mais uma tentativa – a última – de se implantar o foquismo no país. Mudava-se apenas o terreno principal no qual se daria a luta. Em vez de ser nas grandes cidades – onde haviam combatido o pessoal da VPR, ALN, MR-8 – a ação passaria a se desenvolver no campo.


 


 



A principal argumentação utilizada era que os guerrilheiros no Araguaia não teriam realizado um trabalho político prévio entre os camponeses e, assim, subestimado a necessidade da participação popular no processo revolucionário. Portanto, na prática, não teriam sido as ideias da Guerra Popular, defendidas pelos documentos oficiais do PCdoB, que teriam prevalecido e sim a “teoria” do foco, desenvolvida por Regis Debray.
Recentes investigações demonstraram que esses críticos estavam errados. Quer no plano do esquema teórico quer do ponto de vista da prática, o que se tentou realizar no Araguaia foi algo bastante diferente das experiências tipicamente foquistas, como as realizadas pelos grupos armados urbanos e por Che Guevara na Bolívia entre 1966 e 1967.
Talvez uma breve comparação entre a estratégia do Araguaia e a da guerrilha boliviana, um paradigma do método foquista numa área rural, possam elucidar as diferenças entre as duas concepções e métodos. Aqui não vai nenhum juízo de valor até porque os dois movimentos revolucionários, apesar de todo o heroísmo de seus participantes, foram derrotados.


 



O agrupamento guerrilheiro comandado por Che, por exemplo, era composto de muitas pessoas que não conheciam bem o terreno e a população onde atuavam – várias delas nem ao menos eram bolivianas. Uma de suas grandes preocupações era de não serem avistadas pelos moradores locais. Não houve qualquer trabalho social ou político antes – ou mesmo depois – de iniciada a luta armada. Esta começou apenas quatro meses após a sua chegada na área. Por fim, não tinham ligações sólidas com o Partido Comunista ou outra organização política revolucionária que pudesse expandir ou dar repercussão nacional ao movimento. Em certo sentido, a guerrilha substituía o partido. 


 


 



O PCdoB, dentro da esquerda revolucionária brasileira, foi o maior crítico das teorias e métodos foquistas. No principal documento sobre o problema da luta armada – “Guerra Popular: Caminho da Luta Armada no Brasil” – afirmou: “A teoria do foco conduz à renúncia do trabalho entre as massas e não confia na capacidade desta de assimilar as ideias revolucionárias e de se lançarem à luta (…). A concepção do foco nega a necessidade do Partido e defende que o grupo armado é vanguarda política da revolução”. 


 


 



Pelo contrário, a teoria da Guerra Popular exigiria “que os combatentes tivessem forjado sólidos vínculos com as massas da região e soubessem formular suas reivindicações, conhecessem perfeitamente o terreno em que fossem atuar e que este, por suas condições geográficas, fosse favorável às forças revolucionárias e desfavorável às do inimigo”. Foi essa – e não outra – concepção que norteou a montagem e o desenvolvimento da Guerrilha do Araguaia.


 



Os militantes do PCdoB começaram a chegar na região em 1966 – cerca de seis anos antes da eclosão do conflito. Imediatamente foram se integrando à população local, como posseiros, pequenos comerciantes etc. Não procuraram construir uma vida apartada da comunidade onde atuavam. Diante da impossibilidade de desenvolver uma ação abertamente política, realizaram inúmeros trabalhos sociais. Constituíram-se em verdadeiros exemplos para aquele povo. Somente isso explica o carinho depositado neles.


 



Depois de atacados pelo exército e iniciada a resistência armada – foi disso que se tratou – os guerrilheiros iniciaram um amplo trabalho político. Criaram uma organização de massa e de frente-única: a União pela Liberdade e Democracia do Povo (ULDP). Os seus vinte e sete pontos programáticos tinham em conta as reivindicações mais sentidas da população local. Chegaram a ser constituídos treze núcleos da ULDP com dezenas de participantes. Tentou-se, ainda que com pequeno sucesso, incorporar esses moradores à guerrilha. Portanto, nada estava mais distante de uma política tipicamente foquista que a experiência desenvolvida no Araguaia.


 



Naqueles anos, a maior influência no interior do PCdoB era o maoismo. A própria opção pelo esquema da Guerra Popular prolongada demonstra isso. Contudo, mesmo em relação às teses chinesas a concepção que norteou a construção da Guerrilha do Araguaia tem uma importante nuance: apesar de afirmar que o terreno principal da revolução brasileira era o interior do país, não apregoou o cerco das cidades pelo campo. Também não houve o abandono do trabalho político nos principais centros urbanos. Nesse período, por exemplo, o Partido passou a ser majoritário no interior da UNE clandestina e organizou a União da Juventude Patriótica (UJP), que chegou a ter cerca de 300 integrantes no Rio de Janeiro. A grande maioria dos militantes do Partido permaneceu nas cidades. Apenas um pequeno número de pessoas – não superior a 20% dos seus efetivos – foi deslocado para o trabalho de preparação da luta armada no campo.


 


 


Guerrilhas em tempos sombrios


 


 


Por outro lado, não quero dizer que a teoria da Guerra Popular Prolongada, ainda que mitigada, tenha sido a concepção e a forma de luta mais adequadas às condições do Brasil no início da década de 1970. Com toda certeza não foram. O principal erro, talvez, tenha sido absolutizar um modelo de revolução e tentar aplicá-lo em condições muito diferentes de onde havia sido originalmente formulado: China e Vietnã. Estes eram países marcadamente agrários, coloniais (ou semi-coloniais) e tinham parte de seus territórios ocupados militarmente por potências imperialistas. Pelo contrário, na segunda metade da década de 1960, o Brasil já era um país capitalista de médio porte e com uma classe operária numerosa. Chegamos a ser a 8ª potência do mundo e, embora dependentes, estávamos longe da condição de colônia.


 


 



Existia, também, uma visão imprecisa sobre a correlação de forças existente no país no início dos anos 1970. Acreditava-se que a ditadura militar era um regime em desagregação e que estávamos às vésperas de uma nova ascensão do movimento democrático e popular. Não se captava as consequências sociais e políticas do chamado Milagre Econômico (1969-1974) e sua capacidade de ganhar amplos setores das camadas médias urbanas – um dos pivôs da crise do regime ocorrida em 1968 – e neutralizar parcelas importantes da própria classe operária. Lula, recentemente, chegou a afirmar que se tivesse havido eleições diretas em 1970, Médici possivelmente teria ganhado com folga. Tese questionável, mas que reflete o espírito de um operário médio paulista naquela época.  
A dura repressão política e o rápido crescimento econômico (ainda que excludente) criaram uma situação extremamente desfavorável para as forças oposicionistas e, principalmente, para o desenvolvimento da “guerra de guerrilhas”. Entre 1974 e 1975, com o início da crise econômica, a “abertura política”, o crescimento das forças democráticas e populares, especialmente do movimento operário, os comunistas foram obrigados a mudar sua estratégia revolucionária.


 


 



O PCdoB, por exemplo, abandonou muitas das ideia presentes no documento “Guerra Popular: caminho da luta armada no Brasil”, rompendo com os modelos rígidos de revolução. A partir de então indicaria a necessidade da combinação dialética entre múltiplas formas de luta (pacíficas e não-pacíficas), que poderiam se dar em diferentes cenários (campo e cidade) dependendo das correlações de forças existentes e das experiências acumuladas pelo povo brasileiro. A revolução, como diria Mariátegui, não seria “decalque nem cópia e sim criação heróica das massas”. A Guerrilha do Araguaia, com seus acertos e erros, decididamente, contribuiu nesse longo processo de aprendizagem.


 


 


Veja a matéria sobre o Dossiê do Curió


 


 


http://www.aleac.ac.gov.br/aleac/edvaldomagalhaes/index.php?option=com_content&task=view&id=1305&Itemid=2


 


 


http://www.estadao.com.br:80/especiais/com-arquivo-curio-araguaia-ganha-nova-versao,63173.htm



 


 


Sobre o julgamento dos camponeses do Araguaia


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=58577



 


 


Leia outros artigos do autor:


 


 


Em Defesa do Araguaia
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=17243


 


 


A Guerrilha do Araguaia renasce a cada dia
http://www.rebelion.org/hemeroteca/brasil/040415buonicore.htm


 

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