Para este Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura

.

Desde criança, o povo no Brasil é acostumado a viver com a tortura, sob a tortura ou sendo testemunha de grupo de torturadores. Quem duvidar, viaje pelos subúrbios e pela memória brasileira. Pesquise, pergunte ao povo o que acham da tortura. A maioria dirá que é contra, em princípio. Mas antes de um sentimento de alegria, o pesquisador deve descer mais fundo na pergunta. Então mude o nome, não fale em tortura. Fale em ser duro, bater em ladrões ou marginais. Então o pesquisador terá que segurar o vômito. Hoje, no Brasil, ainda se acha moral espancar criminosos, quando não matá-los, porque afinal não passam de criminosos, ou de indivíduos que são de outra gente, fora da humanidade.

Isso posto assim no geral parece tese sociológica sem fonte confiável. Então escrevo sob a minha própria experiência, que se não é universal, pode ao mesmo ser digna de crédito e de fonte. E continuo: eu fui criado para achar natural a prática da tortura. Tanto dentro de casa, ao passar por lições pedagógicas de surras, quando cometia erros que para mim eram acertos, quanto pelo que eu via, de modo mais bárbaro e desapiedado, quando os policiais pegavam os ladrões no subúrbio. No quintal da casa em que eu morava, que resisto à ideia de chamar “minha casa”, no quintal havia um muro que dividia com o terreno da delegacia de polícia civil. Então eu podia ouvir os gritos, os baques surdos de cabeças contra a parede, e as explosões de fúria das autoridades na área. Então eu subia no muro e podia ver o que era inimaginável: três, quatro guardas, como os chamávamos, pulando sobre os corpos estendidos no chão. Eles não tinham o gosto só da palmatória, que também usavam. Eles eram possuídos pelo prazer do contato sem intermediação de instrumento. Eles gostavam do contato carnal, bruto, de socos e pontapés. Isso me fazia mal, um mal sem explicação ao nível da consciência, então eu descia do muro e guardava aquela humilhação feita a um marginal, mas que sentia dor como todo e qualquer um da gente. Eu sabia, ele era um igual a mim, mas isso havia de esconder.

Já ali pude ver que os policiais mais franzinos eram os mais cruéis. Os policiais baixinhos eram os mais violentos, os mais poderosos contra os presos subjugados. Essa contradição eu podia também ver, mas ainda não era uma característica apreendida ao nível da sua condenação absoluta. Foi preciso entrar na juventude, conhecer amigos e leituras fundamentais, que desestablizavam a falsa ordem, foi preciso entrar para os amigos socialistas, para compreender que o nome daquela violência comum era tortura, que o nome verdadeiro para aquele crime era tortura, que outro nome não merecia a não ser tortura, para tudo que tentava anular todo ser vivo, até mesmo em vítimas as mais degradadas. Não importava se eram cachorros ou levassem vida de cachorros. Não importava se fediam, se viviam drogadas, se eram prostitutas, ladrões ou assassinos. A dor que lhes faziam era tortura.

Eu poderia ficar por aqui. Mas continuo com um dos crimes narrados no romance “A mais longa duração da juventude”, que eu e o narrador conhecemos:

“Eu vi nestes dias um homem em pânico. Foi rápido, mas me acompanha o que vi até agora, e penso que não me deixará mais. Eu estava no carro, por volta das oito da noite. Eu seguia para Olinda em uma rua de mão única. Súbito, um jovem surgiu como se viesse do nada, porque sem aviso, origem ou razão. Ele veio correndo por entre os carros, o corpo em fuga pela contramão. Alguns motoristas desviavam do seu vulto, outros, pelo contrário, da tribo e manada de justiceiros dirigiam o carro para cima do jovem. Ele estava sem camisa e corria, doido, daí a manobra dos senhores da ética para cima do mal. ‘Se corre, se está sem camisa, é ladrão. Vamos quebrá-lo’. Quando ele passou por entre duas filas de carros, os faróis iluminaram o seu rosto. Cabelos crespos, assanhados, pele clara, ou melhor, lembrei depois, pele pálida, de onde o sangue havia fugido. Porém o mais marcante eram os olhos, arregalados, graúdos, a boca aberta sem grito, e os olhos enormes que nada fitavam, a ninguém viam, apenas expressavam a sua última oportunidade. Passou por mim como um raio a lembrança do ‘terrorista’ caçado, na descrição da advogada Gardênia: ‘Ele estava na mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito. E com os olhos muito abertos e a língua fora da boca’. Então atrás do jovem em Olinda correu uma moto com dois indivíduos de capacete, ziguezagueando pela contramão. Em menos de um minuto houve o som de pancada no carro. Mas não, foi um estouro atrás de nós. E mais dois estrondos brutos, pá, pá. Então eu compreendi que o jovem perseguido fora alcançado com a justiça dos matadores: três tiros no ladrão safado. Mas como alcançar os seus olhos, esquecer o seu branco arregalado nas órbitas? O sofrimento do terror adivinhava e fugia do destino a menos de um metro adiante. O que pode um homem que corre contra a velocidade de uma moto? – Saltar no balé louco do corpo magro, arremeter-se na fuga do último intento, como se mais vida houvesse. Para mim, me perseguem antes dos três tiros. Para mim, são os olhos de Vargas no maldito janeiro de 1973. A simples evocação dá um gosto amargo de fel e bílis na boca. Terei, ou devo ter o refrigério de uma pausa?”

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *