Passado-futuro: direitos trabalhistas e sindicais entre 1930 e 2009

Os diversos movimentos sociais e políticos, principalmente grevistas, durante a Primeira República, fizeram com que a ''questão social'' entrasse na ordem do dia,[1] não apenas dos conflitos sociais, mas também dos conflitos políticos.

Com a vitória do Movimento de 1930, em 24 de outubro daquele ano, um dos temas mais recorrentes, continuou a ser o da ''questão social''. O novo governo e a maior parte da imprensa passaram a abordar constantemente a problemática.[2]


 


 


Em Porto Alegre, no Diário de Notícias, órgão dos Diários Associados, logo após a vitória dos aliancistas, em artigo chamado Os interesses do proletariado, assinado apenas pelas iniciais de A. G., o articulista dizia que o operariado brasileiro tinha ''todos os motivos para aguardar com serena confiança a ação remodeladora do governo revolucionário''. Para A.G., mais de uma vez, na sua plataforma, e em várias entrevistas e mensagens, Getúlio Vargas havia ''se manifestado a respeito da questão operária'',[3] tendo tornado evidente ''os seus propósitos de tratar os problemas relativos às relações entre o capital e o trabalho dentro de um largo espírito de justiça''. O autor elogiava a criação do Ministério do Trabalho para ''superintender a defesa e o amparo do operariado urbano e rural'', repetindo parte do discurso de posse de Vargas, em 3 de novembro de 1930, quando da instalação da Comissão Legisla tiva.


 


 


Nesse discurso, Vargas ressaltou: ''sabe-se qual era a concepção do Sr. Washington Luiz e da camarilha que o cercava a respeito da questão social. A polícia decidia sempre as dificuldades que surgiam entre o capital e o trabalho (…). Quanto à legislação do trabalho nunca se cuidou seriamente disto (…) As próprias leis celeradas serviram de pretexto para perseguir o operariado em qualquer tentativa que fizesse para dentro da ordem e dos direitos constitucionais, alcançar alguma melhoria. Nas questões entre o capital e o trabalho, o governo nunca interviu como elemento conciliador para equilibrar interesses, mas apenas como força de pressão em prejuízo do trabalhador. É esta nefasta política de escandalosa e desumana parcialidade que a revolução veio derrubar, para uma remodelação em que os interesses de todas as classes possam encontrar por meio de uma legislação social justa e elevada (…).[4]


 


 


Dias depois, em outro artigo, A. G. voltava a bater na mesma tecla, dizendo que ''a questão do trabalho nunca existiu verdadeiramente para os antigos governantes, senão no que apenas se relacionava aos interesses de um grupo de privilegiados, escandalosamente protegidos pela situação deposta''. Para o autor, ''o operariado não era mais que um escravo da miserável organização política que havia resolvido entregar as questões entre o capital e o trabalho ao arbítrio da polícia''. Mas para ele, aquele estado de coisas havia terminado. Utilizando o exemplo do governo provisório de São Paulo e as novas medidas para os trabalhadores, A. G. afirmava que tais mudanças eram a prova da nova diretriz da questão operária no Brasil, pois ''para o trabalhador nacional'' se iniciava um ''período de mais justiça'', para que ele aguardasse ''confiante, um futuro melhor''.[5]


 


 


Nesse momento, Lindolfo Collor ainda não havia assumido o Ministério do Trabalho, que seria criado em 26 de novembro. Isso só iria ocorrer em 1° de dezembro de 1930, em sessão solene no prédio do Ministério da Justiça, no Rio de Janeiro. Juntamente com ele tomaram posse Horácio Cartier, seu secretário e Heitor Muniz, como oficial de gabinete. Concretizava-se a promessa de Getúlio Vargas de criação do Ministério, quando assumiu o ''Governo Provisório'', em 3 de novembro de 1930.[6]


 


 


Na sua posse, Collor prometeu atacar, fundamentalmente, o problema dos sem-trabalho, começando pelos estados do Rio e São Paulo. Ressaltando o Manifesto da Aliança Liberal de 20 de setembro de 1930, afirmou que seu Ministério era o ''Ministério da Revolução'', dizendo que ''a mentalidade do governo deposto, de que no Brasil as questões sociais são meros problemas de polícia (…) já opusera, de há muito, a consciência liberal da Nação o mais justificado e peremptório dos protestos''. Para Collor, o Brasil, como signatário do Tratado de Versalhes, obrigava-se a cooperar na Organização Internacional do Trabalho, a fim de melhorar as condições de existência das populações operárias, marcadas pela miséria, pela injustiça e pelas privações, o que dava causa a descontentamentos que perturbavam a ''ordem social, com grande perigo para a paz e harmonia universais''.[7]


 


 


Mas a greve dos trabalhadores de São Paulo, iniciada em 11 de novembro, pelos operários das fábricas Jaffet, Gênova, Maluf e Mouselli e Cia, em função da redução dos salários em 25%, justificada pelos patrões desde a ''Revolução de Outubro'', também trouxe novos discursos em torno da questão operária.


 


 


O movimento grevista de São Paulo, que se alastrou por várias cidades do estado, atingindo milhares de operários tecelões, ferroviários e outros, reivindicava seis dias de trabalho por semana e retorno aos salários anteriores ao Movimento de 1930. Mas os operários não foram atendidos pelos patrões, nas medidas definidas pelo ex-tenentista e interventor João Alberto.


 


 


Em editorial, o Diário de Notícias alertava que o movimento, que parecia ter assumido proporções graves, ''devido ao enorme número de operários que haviam aderido à parede'', devido à ação do governo de João Alberto, começara a declinar, pois para que os trabalhadores voltassem ao trabalho, ''interviu-se sem violência, sem medidas coercitivas e imposições, mas com elementos pacificadores, atendendo a uns e outros, operários e patrões, procurando atender a defesa de seus interesses''. O editorial continuava: ''(…) Não houve necessidades de patas de cavalos, de perseguições, de assaltos da polícia às sedes das associações de classe, de prisões e espancamentos, como acontecia sob o regime em que a questão social era assunto entregue à polícia. E apesar das proporções que o movimento paredista havia tomado, não se verificou nenhuma desordem, nem nenhuma das tais ''tentativas comunistas' que a polícia do Sr. Júlio Prestes descobria em cada greve que surgia em São Paulo, por mais restrita que fosse. (…) Não há dúvida de que essa atitude conciliadora por parte dos poderes públicos é a mais eficaz para se evitar a perturbação da ordem, se consegue conciliar interesses e, o que é importantíssimo, para despertar a confiança do proletariado na boa vontade do governo.[8]


 


 


A estratégia de setores da classe dominante brasileira, em relação aos movimentos sociais, se consolidava. A imprensa auxiliava nesse papel, defendendo as medidas tomadas pelo novo governo em torno da ''questão social''. Os discursos dos governantes e de boa parte da grande imprensa tinham o mesmo conteúdo. Mas, também, muitos operários aderiram a ele.


 


 


Em manifestação organizada por operários da Light, em homenagem a Getúlio Vargas e Lindolfo Collor, ocorrida em 24 de janeiro de 1931, centenas de trabalhadores, após desfile pela Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, se dirigiram ao Palácio do Catete. No trajeto, os estabelecimentos comerciais fechavam as portas. À frente deles, em um carro, foram Evaristo de Morais e Joaquim Pimenta, antigos defensores de uma legislação trabalhista para solucionar a ''questão social''. Ao som do ''Hino João Pessoa'', Vargas esperava-os na sacada do palácio. Ao acenar para a multidão, foi aplaudido demoradamente. Dois operários discursaram longamente. Os dois destacaram a diferença entre o governo iniciado recentemente e o anterior, no tratamento dos problemas sociais. Para eles, na administração passada, tais problemas eram considerados como meros casos policiais. Falaram que Vargas, em vez de trazer em sua túnica de soldado, perseguições e vinganças, criava o ''paradoxo de uma ditadura liberalíssima''.


 


 


Ao responder, da sacada do palácio, Collor, ao referir-se à ''questão social'', argumentou que a revolução fora feita, antes de tudo ''para garantir a liberdade do povo'', conclamando aos operários que defendessem junto com o governo o lema ''Tudo pelo Brasil, tudo contra os inimigos do Brasil''. Para Collor, quem dentro das fronteiras brasileiras se erigisse em inimigo, ''não dos governos, não das classes, mas do Brasil'', seria indigno ''de viver à sombra das nossas leis e de respirar o ar da nossa pátria''. Pedia, então, ao operariado presente no Catete que observasse a diferença entre dois Estados: o Estado policial que via os fenômenos sociais pela ótica dos interesses econômicos dos patrões e pelas necessidades públicas da ordem material e o Estado que integrou as altas finalidades da assistência social, examinando os conflitos do trabalho através dos anseios de justiça e da necessidade de amparo das classes trabalhadoras. Este último era o Estado do gover no de Getúlio Vargas.[9]


 


 


Pouco tempos depois, em reunião com o empresariado carioca no Ministério, enquanto acontecia a greve dos operários da indústria de Adib Naber, Collor falou aos presentes que estranhava que os operários fizessem greve e depois apelassem a ele. Assim, utilizando uma linguagem policialesca, solicitava aos operários se manifestassem com clareza: ''(…) Ou aceitam a ação do Ministério do Trabalho, que traz uma mentalidade nova, de cooperação… Ou se consideram dentro de uma questão de polícia, no sentido do antigo governo. Ou abandonam a mentalidade bolchevista e subversiva, ou se integram no corpo social a que pertencem. (…) as classes operárias estão sendo fomentadas por elementos subversivos – comunistas, para dizer a palavra perigosa – notei não há a menor dúvida. E muito menos do que esses elementos são agitadores internacionais, conhecidos e que apenas podem prejudicar a conquista dos direitos do operário, pelos quais sempre tive o maior desvelo.[10]


 


 


Nos dias seguintes ao ato de apoio ao governo, os editoriais dos jornais davam destaque aos pronunciamentos. O Correio do Povo, em editorial, afirmava que ''a vasta e complexa ?questão social', suscitada por uma poderosa corrente de revisão da velha mentalidade'' que não ultrapassava o ''estreito limite dos casos de polícia''. Assim, superava-se uma época em que ''as relações entre as classes patronais e as classes trabalhadoras (…) eram reguladas pelo arbítrio policial''. Com a criação e instalação do Ministério do Trabalho, os ''homens do Estado'' voltavam-se ''com a melhor simpatia, para os elementos que na sua honesta obscuridade'', eram os ''criadores da riqueza nacional, os forjadores da grandeza econômica do Brasil''. Dessa forma, continuava o editorial, ''a magnífica demonstração dos operários do Rio de Janeiro, ligou esses humildes heróis do trabalho ao espírito renovador da Revolução''.[11] Atos como esse, na capital federal, tinham a simbologia de serem relevantes e ter repercussão nacional, pois o Rio de Janeiro era fonte de irradiação de temas e debates em torno de questões sociais e políticas.


 


 


No discurso de Collor, se resumia as bases das políticas sociais do ''Governo Provisório''.[12] Collor iniciou destacando que só os governos despóticos e fracos sentiam necessidade de interferir na opinião partidária das associações de classe, pois a desordem estava na ausência destas, sejam patronais ou obreiras. Disse mais: que a desordem estava ''no desamparo dos patrões contra exigências ruinosas dos operários, assim como na impotência dos operários contra imposições descabidas dos patrões''; a desordem estava ''na falta de aparelhamentos sociais caracterizados para garantir a liberdade, a remuneração econômica e o amparo jurídico do trabalho no Brasil''. E, enquanto esses aparelhos não existissem, as relações entre os patrões e os trabalhadores, seria de luta e não de cooperação. Assim, o conceito de luta de classes deveria ser substituído pelo de cooperação entre as classes. Collor continuava: ''(…) Repar em os representantes do operariado na diferença profunda entre esses dois quadros: no primeiro, o Estado policial encara todos os fenômenos sociais pelo prisma restrito das conveniências econômicas dos patrões e das necessidades públicas da ordem material; no segundo, o Estado se integrou nas suas altas finalidades de assistência social e examina os conflitos do trabalho, não apenas através das lentes dos interesses capitalísticos, mas ainda das aspirações de justiça e das necessidades de amparo das classes trabalhadoras. (…) que a nenhum governo sucessor do nosso será possível retroceder no caminho iniciado e volver à antiga situação de afrontosa injustiça em que as questões sociais eram consideradas simples casos de polícia. (…) Eis, porque (…) [Collor fala em nome do Brasil e da Nacionalidade] deve receber toda a condenação, eis porque deve receber a vossa condenação mais veemente toda agitação encaminhada à sombra de princípios subversi vos, contra a integridade do Brasil, contra a sua soberania (…).[13]


 


 


Estava dada a estratégia do governo Vargas. Para os apoiadores, a complacência. Para os ''agitadores'', os ''subversivos'', os ''adversários'', a marca de ''antipatriotas a serviço de potências estrangeiras''. A nacionalidade não comportava, pela fala de Collor, a oposição ao governo. Aliás, o governo era a síntese da nacionalidade. O discurso servia para combater aqueles que tinham ''Moscou como modelo''.


 


 


Em 6 de março de 1931, Lindolfo Collor enviou, ao chefe do ''Governo Provisório'' Getúlio Vargas, o projeto de lei que deveria regular a organização e o funcionamento das associações profissionais, patronais e operárias, no território brasileiro. Fazia três meses que havia assumido a pasta e era, segundo o ministro do Trabalho, ''a primeira iniciativa sistemática no sentido de organização racional do trabalho em nosso país''.


 


 


Em carta a Vargas, com a exposição dos motivos do anteprojeto, Collor explicava: ''(…) A minha experiência (…) já me deixou arraigada à convicção de que, sem a organização das classes profissionais, impossível se torna qualquer resultado apreciável na justa e necessária conjugação dos interesses patronais e proletários. (…) O sindicalismo não destrói, mas confirma o conceito de propriedade privada. (…) Penso que não se poderia (…) precisar melhormente a tendência dos nossos tempos em relação aos operários: considerá-los como associação do capital e da administração, ouvir-lhe as sugestões, integrá-lo na comunhão dos interesses econômicos de que ele é um dos fatores. (…). Com a criação dos sindicatos profissionais, moldados em regras uniformes e precisas, dá-se às aspirações dos trabalhadores e às necessidades dos patrões expressão legal, normal e autorizada. (…) Os sindicatos, ou associações de classe serão os pára- choques dessas tendências antagônicas. (…).[14]


 


 


Um dos artigos do decreto n° 19.770 de março de 1931, que organizou o sindicalismo brasileiro, sob o ''controle'' do Estado e que liquidou a autonomia sindical, proibia a atividade política ou partidária nos sindicatos.[15]


 


 


As críticas das lideranças sindicais logo apareceram. Os motivos da proibição são explicados por Mário de Almeida Lima: ''O que o Ministério visava com essa proibição: neutralizar, tanto quanto pudesse, a ação considerada ''subversiva'' de adeptos de doutrinas socializantes. A questão social deixara de ser uma ''questão de polícia'', mas a prudência aconselhava manter sob controle qualquer tentativa de mudanças nas estruturas vigentes. Collor insistia em pregar a cooperação, o entendimento entre as classes. Queria que o seu Ministério fosse o instrumento dessa pacificação''.[16]


 


 


Em editorial do Correio do Povo, o tom de crítica aos movimentos que se opunham ao governo Vargas e a política do Ministério do Trabalho começava a ficar mais claro. Os avanços das lutas sociais pós-Movimento de 1930 e a oposição crescente de parcelas do operariado ao governo Vargas, explicitavam o que antes aparecia nas entrelinhas dos discursos. O jornal opinava que com a criação do Ministério do Trabalho, o ''Governo Provisório'' integrou o Brasil na corrente dos países de idéias vencedoras, contra aqueles em que ''a chamada questão social'' era ''encarada sob o aspecto simplista do mero antagonismo de interesses entre patrões e operários'', onde era ''um caso apenas suscetível de sumárias e violentas interferências policiais''. O editorial do diário gaúcho prosseguia afirmando que a orientação arbitrária mudara e outros eram os métodos e o tratamento que se dava à comunidade operária. Porém, alertava que se ''a revolução liberal de três de outubro não criou um novo paraíso social, com o recurso do ópio de Moscou, soube compreender e canalizar as aspirações do proletariado nacional para um plano de humana justiça'', pois quando o operário reclama ''o poder público não manda espingardeá-lo pela polícia ou dissolver-lhe os comícios com o expediente russo das patas de cavalo''. Ao contrário, quando os trabalhadores, prosseguia o editorial, entram ''em litígio com os diretores das fábricas, o governo procura auscultar-lhe a opinião, ponderar-lhe as razões, para depois resolver com o melhor espírito de eqüidade, por intermédio dos órgãos competentes''. Nesse momento, maio de 1931, Collor estava em São Paulo, pela primeira vez como ministro, visitando associações de classe e círculos operários. Para o Correio do Povo este era um sinal da ''máxima cristã da ?cooperação de classes''', contra a ''fórmula errônea, explorada pelos adventícios envenenadores da consciência proletári a da ?rivalidade das classes''', pois o ''Governo Provisório'' não podia ''decretar o paraíso para o operário nacional conforme o bárbaro charlatanismo estadista que os reformadores da escola de Lenine puseram em voga''. O governo só poderia ''dentro das exigências do momento e de acordo com o ritmo das tradições sociais e jurídicas da nacionalidade'' reconhecer-lhes os direitos e traçar-lhes as obrigações, mas dentro de uma linha de delimitação até então nunca alcançada no Brasil.[17]


 


 


No entanto, os trabalhadores se movimentavam. Em São Paulo, a União dos Operários em Fábricas de Tecidos, enviou, provavelmente, em junho de 1931, ao comandante da 2ª Região Militar, general Góes Monteiro, um longo relatório expondo a difícil situação dos operários fabris daquele estado, a fim de que intercedesse junto ao chefe do ''Governo Provisório'' em benefício de melhorias de condições de trabalho e de vida.


 


 


A resposta dada por Góes Monteiro, ao secretário-geral e ao primeiro secretário da entidade, foi em torno da ''questão social'' e a revolução. O militar afirmava que contrastava a exposição de pauperismo e miséria que eles faziam, impondo-se ao governo revolucionário, por ''deveres cristãos de solidariedade'', encontrar uma maneira imediata de atender as necessidades dos trabalhadores. Por outro lado, Góes Monteiro respondeu que o comunismo era sinônimo de fome. Defendeu, então, que deveria matar-se ''a fome do operariado'', dando-lhe ''o direito de viver com dignidade''. Para ele, o proletariado deveria incorporar-se, ''sem subversões inúteis e, em tempo breve, à sociedade nova''. Para o comandante, a revolução brasileira havia enquadrado no seu programa a ''questão social'', nos ''imperativos do meio nacional, fora de moldes superiores e cópias servis de outro povos''. Por isso, a solução brasileira, ''surgida antes das condições dadas do meio que das intençõ es conscientes, como queria Spencer'', tornava-se urgente, com a necessidade do Estado intervir junto aos chefes de fábricas. Prometia, por fim, encaminhar o relato ao presidente Vargas.[18] Em uma carta sem grandes comprometimentos, a não ser o de repassá-la ao governo federal, Góes Monteiro mantinha-se uníssono com a argumentação de poder.


 


 


O discurso sempre se dava em torno dos avanços que o governo fizera em relação ao governo anterior, com o argumento de que em menos de um ano o governo havia feito mais em matérias de legislação social do que durante os quarenta anos de regime republicano, sem a solução pelo ''coice de armas ou a golpes de sabres pelas cavalarias policiais''. Outro argumento constante era o de que o governo procurou ''substituir o antagonismo de classes'' pela ''norma da solidariedade, da interdependência de interesses morais e materiais'' das classes patronais e operárias. O exemplo da criação do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul era utilizado como referência dessas mudanças.[19]


 


 


Este pequeno recorte do processo histórico brasileiro nos traz ensinamentos. Especialmente no sentido da percepção de que a luta por direitos tem uma sinuosa e dialética história de avanços e retrocessos. 78 anos depois, parte majoritária das classes dominantes e seus representantes nas diferentes esferas de poder (executivos, legislativos e judiciários), reforçados pela ótica neoliberal e pelo exercício do poder econômico, continuam procurando limitar os direitos dos trabalhadores ou extingui-los. Nesta ótica, nossas elites sequer conseguem reproduzir o discurso conciliatório de décadas atrás sobre a harmonia social. Fazem sua luta de classes aproveitando o refluxo dos movimentos sociais e sindicais. Ainda insistem acabar com a Era Vargas, NÃO POR AQUELA FOI UMA ÉPOCA DE DOAÇÃO DE DIREITOS POR PARTE DO ESTADO E SEU LÍDER MÁXIMO, MAS PORQUE REPRESENTOU UM PERÍODO DE CONQUISTAS HISTÓRICAS DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES.


 


 


78 anos depois da criação do Ministério do Trabalho, quase 77 anos de criação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), os trabalhadores continuam defendendo seus direitos trabalhistas e previdenciários,[20] (re)fazendo sua luta de classes.


 


 


Para os trabalhadores, entre o adesismo acrítico da maior central do Brasil e o esquerdismo que não consegue enxergar conquistas, mesmo que limitadas, no âmbito do Estado burguês, o exemplo de 2008 traz ensinamentos. Como já nos mostrou Argemiro Borges, ''a agenda positiva teve início com o veto presidencial à Emenda-3, também batizada de Emenda da Globo, uma armadilha da bancada patronal no parlamento que limitava a fiscalização das empresas e estimulava a chamada Pessoa Jurídica (PJ), uma relação contratual sem direitos trabalhistas. Na seqüência, o governo enviou mensagem ao Legislativo propondo a ratificação de duas importantes convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Convenção 151, que garante o direito de negociação coletiva ao servidor público, e a Convenção 158, que proíbe as demissões imotivadas no setor privado''. Seguem-se a isso, como explica Borges, que ''o Congresso Nacional aprovou o aumento do tempo da licença -maternidade de 120 para 180 dias e agora discute medidas para cercear o uso abusivo do estágio nas empresas e para garantir os direitos trabalhistas de 6,8 milhões de empregadas domésticas''. Para o autor, a ''conquista importante foi a implosão do Fórum Nacional de Previdência Social, um organismo tripartite que discutia a terceira reforma regressiva dos direitos previdenciários. Tanto esta ?reforma' como a trabalhista saíram da pauta da mídia venal, para seu desânimo''.[21]


 


 


Para 2009, os trabalhadores têm que se manterem atentos. Continuará a luta do sindicalismo pela redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, por ajustes salariais para diversas categorias, enfrentando o discurso das classes dominantes que querem colocar os reflexos da crise, como sempre, nas costas dos assalariados. O aumento dos índices de sindicalização dos últimos tempos, na contramaré da ofensiva neoliberal, é outro alento para as lutas que virão, sobretudo em defesa da contribuição e da unicidade sindical, na contramão do que querem empresários, o governo e a própria CUT. A luta prosseguirá em defesa dos direitos constitucionais e celetistas, em torno da estabilidade no emprego de diretores sindicais, bem como  fazendo com que a questão social, sempre na ordem do dia, continue sendo pautada pela visão autônoma dos trabalhadores. Nem que seja com movimentos paredistas, em especial, enfrentando a histórica criminalização de seus movimen tos sociais e políticos. Só assim, o mundo do trabalho terá um bom 2009, sempre tendo em vista que a questão social é um caso de direito e não mero caso de polícia, como teimosamente o pensamento reacionário insiste em manter.



 


Notas


 



Este artigo resgata parte de minha Tese de Doutorado O fantasma do medo: O Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937), p. 38-51, defendida na UNICAMP, em 2004, sob a orientação de Michael Mcdonald Hall.


 



[1] Sobre a questão social na Primeira República, em relação a São Paulo e Rio Grande do Sul, respectivamente, ver MOREIRA, Sílvia. São Paulo na Primeira República: as elites e a questão social. Coleção Tudo é História, n. 125. São Paulo: Brasiliense, 1988; QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. O positivismo e a questão social na Primeira República. Guarapari – ES: Ex Libris, 2006.



[2] Carla Luciana Silva defende a idéia de que, na discussão sobre a ''questão social'', a imprensa aparecia como ''uma variável da interação entre Estado e sociedade civil''. Cf. Onda vermelha. Imaginários anticomunistas brasileiros (1930-1934). Porto Alegre: Ed. PUC-RS, 2001, p. 19.



[3] Esta era outra forma de definição, por algumas correntes sindicais e políticas, da ''questão social'' no período pré-1930, e que continuou a ser usada no período posterior.



 


[4] Cf. Os interesses do proletariado. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 05/11/1930, p. 5. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – MCSHJC/RS. Ângela Araújo destaca que os revolucionários de 1930, além de se apresentarem ''como defensores de uma nova ordem social menos excludente, acenavam com um novo tratamento da questão social que contemplava a garantia de direitos pelos quais os trabalhadores há muito vinham lutando''. Por isso, não é de se estranhar que muitos trabalhadores receberam a ''Revolução de Outubro'' com simpatia. Cf. A construção do consentimento. Corporativismo e trabalhadores nos anos trinta. São Paulo: Edições Sociais, 1998, p. 161-2.


 


 


[5] Ver A questão operária. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 19/11/1930, p. 5. Em outro artigo, chamado Tarefa de titãs, A. G. defende as medidas tomadas pelo interventor de São Paulo, João Alberto, em relação às greves que vinham ocorrendo naquele estado. Ver idem, 22/11/1930, p. 5. Entre as medidas tomadas pelo governo de João Alberto, em 17 de novembro, diante das greves que vinham ocorrendo desde o início do ''Governo Provisório'', destacaram-se: aumento de 5% para todos os operários; mínimo de 40 horas de trabalho semanal; nenhum operário que tinha tomado parte saliente nas últimas greves, poderia ser dispensado sem prévio inquérito policial; os operários que continuassem em greve, após esta data, seriam responsabilizados pela ordem material dos estabelecimentos em que trabalhavam e só se reuniriam nas sedes de suas agremiações; o governo garantia a liberdade de todo o operário que quisesse trab alhar nas fábricas e estabelecimentos industriais que continuassem em greve; entre outros. Cf. ''O problema operário'', idem, 18/11/1930, p. 2, MCSHJC/RS.


 


 


[6] Sobre a experiência de Lindolfo Collor como primeiro ministro do Trabalho, ver ARAÚJO, Ângela, op. cit., 1981. No que nos interessa aqui, uma das principais teses da autora é considerar que o movimento operário desenvolvido na Primeira República era ''o grande responsável pelo novo comportamento do Estado face à chamada ?questão social' no processo de revolução de 1930''. Cf. idem, p. 44. Entretanto, para Evaristo de Moraes Filho, no prefácio do livro de Rosa Araújo, no pós-1930, a verdade ''era que a questão (agitação) operária continuava sendo uma questão de polícia, com numerosas prisões de trabalhadores tidos como subversivos e suas expulsões, ou do território nacional ou da sua localidade de trabalho''. Ver idem, p. 21.


 


 


[7] Cf. Tomou posse da pasta do Trabalho, Indústria e Comércio o Sr. Collor e O Ministério do Trabalho – Foi solene a posse do Sr. Lindolfo Collor. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 02/12/1930, p. 1. A. G. escreveu outro artigo, ainda para o mesmo diário, referindo-se ao programa do Ministério do Trabalho e o discurso de posse de Collor, onde salientou que a obra do ministro ainda não havia começado, sendo cedo para julgá-la. Porém, disse, ''a lúcida inteligência'' do ministro, sua ''visão clara e de boa vontade'' permitiam que se aguardasse com plena confiança o desdobramento de sua atividade. Cf. A questão social no Brasil Novo, idem, 04/12/1930, p. 7, MCSHJC/RS. Collor repetia a fala que vinha fazendo desde a campanha da Aliança Liberal, especialmente do discurso redigido por ele e lido na Convenção de 20 de setembro de 1929. Este discurso pode ser conferido na íntegra em LIMA, Mário de Almeida (org.). < em>Origens da legislação trabalhista brasileira: exposições de motivos de Lindolfo Collor. Vol. 7. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva, 1990, p. 179-83.


 


 


[8] Ver Nos métodos. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 04/12/1930, p. 5, MCSHJC/RS. Artigos e pronunciamentos de Collor em torno da ''questão social'' podem ser visto em COLLOR, Lindolfo. Lindolfo Collor e a questão social. Artigos de 1917-1941. Brasília: Ministério do Trabalho, 1989.


 


 


[9] Cf. Realizou-se ontem, na capital da República, revestindo-se de grande imponência, a manifestação promovida pelos operários aos srs, Getúlio Vargas e Lindolfo Collor. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 25/01/1931, p. 1, MCSHJC/RS. Ver a íntegra do discurso de Collor em LIMA, Mário de Almeida, op. cit., p. 195-9.


 


 


[10] Edgard Carone cita a fala de Collor aos empresários a partir de matéria sobre o encontro extraída do Jornal do Comércio de 18/04/1931. Cf. apud A República Nova (1930-1937). 2 ed. São Paulo: Difel, 1976, p. 134.


 


 


[11] Ver A solidariedade do operário.  In: Correio do Povo, Porto Alegre, 2701/1931, p. 3, MCSHJC/RS.


 


 


[12] Um resumo das políticas sociais do período, em estudo que se estende até o final do Estado Novo, ver D´ARAÚJO, Maria Celina. Estado, classe trabalhadora e políticas sociais. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 213-239.


 


 


[13] Cf. O brilhante e substancioso discurso que o ministro Lindolfo Collor proferiu, em nome do governo, para agradecer a manifestação das classes operárias. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 28/01/1931, p. 12, MCSHJC/RS.


 


 


[14] Cf. Carta de Lindolfo Collor a Getúlio Vargas, 06/03/1931, enviada do MTIC, especialmente p. 1 e 8. Arquivo Nacional – AN, Fundo Gabinete Civil da Presidência da República, lata 46, ano 1931. Ver tb.: LIMA, Mário de Almeida, op. cit., p. 74-75. A íntegra do decreto 19.770 pode ser visto na mesma obra, p. 227-31.


 


 


[15] Sobre a autonomia sindical no período, ver BERNARDO, Antônio Carlos. Tutela e autonomia sindical: Brasil, 1930-1945. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, especialmente p. 78-122.


 


 


[16] Ver LIMA, Mário de Almeida, op. cit., p. 76.


 


 


[17] Sobre uma retrospectiva resumida nas lutas sociais no Brasil de 1930 a 1937, em torno das lutas operárias, ver IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. Lutas sociais na América Latina. Série Revisão. N. 35. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, especialmente p 93-7. Cf. As reivindicações operárias. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 22/05/1931, p. 3, MCSHJC/RS. Em outro editorial, o jornal de maior circulação do Rio Grande do Sul, afirmou que o Ministério do Trabalho foi chamado de ''Ministério da Revolução'', porque, ao procurar dar soluções aos problemas sociais, eles deixariam de ser, no Brasil, simples ''casos de polícia''. Cf. Perspectiva promissora. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 22/12/1931, p. 3, MCSHJC/RS.


 


 


[18] Ver Correio do Povo, Porto Alegre, 08/07/1931, p. 10, MCSHJC/RS.


 


 


[19] Ver o editorial Política social. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 11/08/1931, p. 3, MCSHJC/RS.


 


 


 


[20] O Memorial da Justiça do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, inaugurou a exposição ''Documento é legal, Carteira de Trabalho'', sobre a CTPS, em 19/05/2008, demonstrando a importância do documento na história dos trabalhadores brasileiros, não apenas sendo vista como uma forma de ''controle'', como sempre argumentaram aqueles que transformam o Estado abstrato em agente histórico, deslocando a luta dos trabalhadores do centro da ação política. A mesma exposição foi levada ao interior do estado, sendo aberta em 04/12/2008, na sala de exposições do Centro de Memória da Justiça do Trabalho de Santa Maria. Ver informações


 


 


 


[21] Ver o artigo de Altamiro Borges

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