Pequeno manifesto pelas masculinidades fraquejadas

“Meus filhos, o que eu desejo do fundo do meu coração é que vocês saibam que não precisam se enquadrar em caixa alguma e que não precisam seguir a cabeça de ninguém, nem mesmo a minha.”

Foto: Projeto de Ken Browar e Deborah Ory

Há pouco mais de cinco anos, um então desprezível deputado federal proferiu a seguinte frase: “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher.”. Para a nossa desgraça, ele é hoje o presidente do Brasil.

Desde então, esse ser nos deixou nauseadxs incontáveis vezes com falas ultrajantes, mentirosas e muitas vezes criminosas; sendo assim, qual seria meu objetivo ao trazer justamente essa à baila e ainda mais neste momento, quando vivemos o ponto mais agudo da pandemia do novo coronavírus?

Se eu faço isso é por acreditar que um dos principais determinantes para nos encontramos nessa situação aterradora é precisamente o patriarcado, que tem como pilar de sustentação a noção de que os homens representam o ideal do ser humano, o que é almejado, e as mulheres representam algo fraco, faltoso – fraquejado. Obviamente, aqui, e talvez apenas aqui, caiba a expressão “nem todo homem!”, já que esse ideal tem cor (branca, quanto mais “nórdica” melhor), tem classe (quanto mais alta, melhor), tem orientação sexual (quanto mais supostamente hétero, melhor), tem identidade de gênero (quanto mais cis de camisa pólo, melhor) e tem religião (mas no Brasil, se não for cristão ou judeu, não tem salvação).

Há, contudo, um outro motivo que me levou a recordar dessa “piada”: de acordo com o misógino presidente, eu poderia me gabar de ser um homem com H maiúsculo, já que a minha parceira Carol e eu tivemos Francisco em julho de 2017 e em março de 2020 chegaram os gêmeos Luís e Caetano. Como pretendo fazer uma vasectomia assim que for seguro, tudo indica que encerrarei o meu ciclo reprodutivo sem “fraquejar”. Ou não…

Se não “fraquejamos” na loteria dos cromossomos sexuais, Carol e eu desejamos e estamos nos prontificando para que os nossos filhos fraquejem lindamente nas formas como irão expressar as suas masculinidades.

Com Francisco esse esforço começou mesmo antes do nascimento, quando, em tempos de cada vez mais bizarros “chás de revelação”, optamos por não saber o seu sexo e assim, durante nove meses e quatro dias ele foi o nosso “bebezin”. Assim, ao chegar em casa, Cisco foi apresentado a um quarto de bebê humano e não a um quarto de “menino” ou de “menina”. As suas roupas igualmente eram, quem diria (!), roupas de um bebê humano, que propiciavam todo o conforto e proteção que ele necessitava e também beleza, que pode não ser essencial, mas nós gostamos.

Com os gêmeos seguimos um roteiro diferente pois achamos que saber o sexo seria importante para que Francisco começasse a se familiarizar com os dois seres que estavam chegando e que trariam tantas mudanças para a sua vida. Mas, numa dessas gratas coincidências, eles também deram o seu recado, já que nasceram no dia internacional da mulher, 8 de março.

Um outro lado desse esforço tem a ver com o homem que eu sou hoje e com o homem que eu serei no tempo que eu tiver para acompanhar os passos dos meus filhos. Evidentemente, esse homem que hoje vejo no espelho traz em si o menino, o garoto e o jovem que eu fui. Ou seja, existe tudo o que já foi, que de certa forma continua sendo; existe o caminho à frente, que eu espero que seja longo; e existe o hoje, este ponto de encontro de existências nem sempre harmoniosas, nem sempre fáceis, mas que nos apresenta diariamente com um nova possibilidade de ser.

Meus amados Cisco, Lula e Caê, eu agora escrevo para o futuro, para os meninos grandes que vocês serão e para os adolescentes e homens jovens que virão logo depois. Eu escrevo com o coração cheio de esperança e ao mesmo tempo com uma boa dose de medo, pois a vida aqui no Brasil de abril de 2021, epicentro de uma pandemia global e governado por um genocida, está muito difícil.

Eu escrevo de um lugar afundado no “patriarcado capitalista de supremacia branca imperialista”, como apontou a genial bell hooks.[¹] Foi nesse mundo que eu cresci e mesmo que grandes e necessárias mudanças tenham acontecido e estejam acontecendo, é nesse mundo que vocês estão crescendo também. Vocês são meninos brancos filhos de um pai e de uma mãe que tiveram uma vida confortável e que buscam proporcionar o mesmo para vocês, por isso, estou certo que já notaram que a correnteza do rio está a seu favor; no entanto, eu torço que tenhamos tido sucesso ao ensiná-los a usar os privilégios que recebem dessa sociedade tão desigual e injusta para nadar contra a correnteza sempre que a oportunidade aparecer.[²] Eu torço, meus filhos, que vocês sejam sabotadores contumazes desse sistema.

Vocês seguramente encontrarão, cada um em seu percurso e cada um ao seu modo, formas criativas de fazer isso, mas deixo aqui a minha contribuição na forma de uma pequena e inacabada lista que batizei de “pequeno manifesto pelas masculinidades fraquejadas”:

Eu espero que vocês fraquejem ao respeitar as meninas e as mulheres, as enxergando como iguais (na diferença) e aprendendo com elas;

Ao ter plena consciência de que é na diversidade que reside a maior beleza e também a maior potência do ser humano;

Ao demonstrar as suas emoções, sabendo que todas elas são belas e necessárias;

Ao acolher e ao saber compreender e utilizar a raiva, nunca a confundindo com a agressão ou com a violência;

Ao saber que nada, absolutamente nada precisa ser vivido nas sombras e que sempre existe ao menos um par de ouvidos e um ombro amigo para acolher as nossas dores; *Eu e sua mãe ficaremos honrados quando formos chamados para essa função, mas ficaremos felizes quando outros/as tiverem esse privilégio.

Que fraquejem ao se permitirem ser sensíveis, delicados, cordiais e preocupados com o bem estar de quem quer que esteja ao seu lado;

Ao receber ou a pedir o seu primeiro beijo, seja ele para uma menina, menino ou menine;

Ao ter a sua primeira relação sexual quando desejarem e não por pressão social ou de amigxs, e ao saberem que havendo respeito, diálogo e consentimento, tudo é válido;

Ao colocar o desejo e o prazer de suas parceiras ou parceiros no mesmo patamar de importância do seu;

Que fraquejem ao vivenciarem situações de risco como etapas normais do crescimento e da vida, como formas de descobrir seus limites, e nunca para provarem que são “homens”;

Ao primarem pelo cuidado de sua saúde física, sabendo que isso não tem nada a ver com músculos hipertrofiados;

Ao cuidarem de sua saúde mental e emocional, mantendo abertos os canais de autoconhecimento e não escondendo sua vulnerabilidade e dor;

Ao cuidarem, ponto.

Ao fugirem da luta por motivos fúteis (todas as vertentes de “quem tem o pau maior”) mas sabendo lutar pelas coisas que mais importam, e principalmente, junto à quem mais precisa;

Que fraquejem ao terem consciência de que a medida da masculinidade não tem nada a ver com o tamanho de seu pênis, mas com o grau de justiça e respeito com que tratam todxs ao seu redor;

Aprendendo a cozinhar, lavar roupa, fazer uma boa faxina e sabendo que essas e as outras tarefas domesticas têm que ser compartilhadas;

Rebolando, dançando, escrevendo poesia, fazendo artistagens, lendo e sempre exercitando a curiosidade e a busca pelo diferente;

Que fraquejem ao nunca, jamais, acharem normal um genocida presidente, um homem de uma masculinidade insegura ao ponto de ver em tudo uma ameaça à sua “hombridade”; que chega ao absurdo de dizer que um vírus precisa ser enfrentado “como homem”.

Meus filhos, o que eu desejo do fundo do meu coração é que vocês saibam que não precisam se enquadrar em caixa alguma e que não precisam seguir a cabeça de ninguém, nem mesmo a minha. O que desejo é que vocês saibam o que lhes faz feliz, que exercitem essa felicidade, que consigam fazer ela irradiar e que lutem para que todxs tenham essa mesma oportunidade, pois enquanto essa mudança não for estrutural, não haverá justiça, não haverá igualdade, não haverá felicidade.

Com amor, do seu pai Dani.

Recife, 15 de abril de 2021.


Notas

[1] bell hooks (2004) The will to change: men, masculinities, and love. Washington Square Press: 2004.

[2]Os homens que querem ser feministas não precisam ganhar um espaço no feminismo. Eles precisam pegar os espaços que já ocupam em nossa sociedade e transformá-los em feministas.” (Kelley Temple)

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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