Pintar o cabelo na Copa não pode? Uma discussão sobre gênero e nossa ideia de futebol.

O futebol nacional não é apenas fundador da identidade cultural brasileira, mas principalmente do arquétipo do homem brasileiro.

Ao percorrer os portais da internet em buscas de análises que tentassem explicar a derrota brasileira nas quartas de finais da Copa do Mundo para a Croácia, me deparei com o seguinte título veiculado pela Uol: “ Cabelo pintado na seleção é falta de foco, comentaristas divergem.” A matéria inusitada lança uma polêmica aparentemente vazia em um setor em que o desempenho dentro de campo deveria ser o mais importante, depois de uma derrota em um contra-ataque faltando menos de 4 minutos. Embora seja crucial também, na  busca por fatores que foram decisivos para o Brasil cair mais uma vez para um seleção europeia,  contextualizar a derrota.

Não se podem negar que o contexto influencia o desempenho de um time, mas produzir análises em cima de escolhas individuais (mesmo que tenha sido feita coletivamente, a decisão é pessoal) e comportamentais tais quais: o que comem, o que vestem, como cortam o cabelo, o que usam, como dançam, comemoram ou escutam musicalmente, não ajudam muito a elucidar o contexto real que circundam o mundo do futebol moderno, os quais estão na esfera geopolítica e nas relações capitalistas. Você pode até pensar que essas coisas são a ponta do iceberg dessas relações, entretanto, da maneira como são debatidas nesses espaços da mídia, não passam de ações para moralizar e enquadrar os jogadores dentro do comportamento que se espera ser o ideal para a função.

Para mim, que sou uma estudiosa das relações de gênero, discutir sobre cabelo platinado e uso de brinco esconde outra coisa, um debate sobre masculinidade.  Pintar o cabelo e colocar brinco sempre foram ações consideradas femininas, a vaidade por si só  é vista como algo da esfera feminina, não combinaria no imaginário com o campo de batalha chamado estádio e com um soldado na trincheira do gramado de uma partida de futebol.

O futebol nacional não é apenas fundador da identidade cultural brasileira, mas principalmente do arquétipo do homem brasileiro. Saber jogar bola é fundamental para um garoto se firmar rapaz entre outros garotos, fazer o chamado papel de homem, enquanto no âmago da nossa sociedade, esse esporte sempre foi um terreno dominado pelos homens para eles mesmos. Não é por acaso que o futebol foi proibido em solo nacional às mulheres por 40 anos! Menos ainda que as expressões, códigos de conduta e o vocabulário futebolístico sejam transportados do jogo para as relações amorosas e sexuais. Pintar o cabelo e colocar brinco feriria esse código de conduta do macho brasileiro, pois o deixaria mais feminino, algo que não combinaria na fantasia popular com um guerreiro jogador de futebol.

O fato de haver hoje mulheres vencedoras nesse campo de batalha não altera a visão de que, para isso, elas precisam se masculinizar, desde a modulação de voz, quanto a postura e o cuidado com o corpo.  Mulher que joga bola ou atua no ramo futebolístico não pode ser feminina, sob a pena de ser avaliada pelos outros como fraca. É por essas e outras, que Marta, a melhor jogadora de futebol de todos os tempos, fez questão de entrar em campo pela seleção brasileira de batom na tentativa de dissociar essa dicotomia entre vaidade/ feminino x jogo que tanto parece ser o pilar de nossa ideia do que seja o futebol.

Neste construto da alma e do homem nacional, a fraqueza é imperdoável para quem está no front, lembre-se que ditado popular diz: “homem não chora” e os julgamentos sobre a derrota do Brasil são unânimes: “faltou liderança, faltou homem no campo que fizesse a falta, faltou líder, faltou espírito combativo, faltou principalmente homem”.

Neste sentido, pintar o cabelo e colocar brinco são apenas circunstâncias de uma análise que não diz outra coisa que não seja a discrepância no conceito de masculino que traria essa nova geração de jogadores: “eles não venceram e não vão vencer porque não foram machos suficientes como os das antigas gerações campeãs que não tinham brinquinhos e não tinham essas frescuras com o cabelo”. Porque homem que é homem, para este imaginário, pode até cheirar mal depois de uma partida por não usar corretamente o desodorante, só não pode ficar no espelho que, com certeza, vai perder.

E vaidade aqui não tem nada a ver com as possíveis atitudes narcisistas e egocêntricas de alguns jogadores dentro e fora de campo que podem ter contribuído para o insucesso coletivo. Vaidade que cito é gostar de si, permitir-se o autocuidado e usar o cabelo como que quiser,  escutar e dançar a música que gosta. Contudo, não é esse o foco da discussão dos comentaristas esportivos, eles não aprofundam as análises sobre  as atitudes dentro de campo e o seu contexto econômico e político, mas sobre as escolhas comportamentais dos jogadores, porque há aí uma nova geração que desmistifica a ideia já pré concebida não só de jogador de futebol, mas de homem.  Eles pintam os cabelos, eles usam brincam, eles caem em campo e choram depois de uma derrota. Eles são fracos. Para a nossa sociologia de boteco, esses são comportamentos do feminino, e na dicotomia do patriarcado, o feminino é o perdedor.

É só percorrer as mesas redondas e portais esportivos, o debate sobre o cabelo platinado é levantado até por ex-jogador de uma geração que era conhecida também por cortes extravagantes, rodas de pagode, samba no pé e alegria. Teria um cabelo ideal para o vencedor? Ou é porque a tintura é vista como coisa de mulher? O debate sobre levar ou não a família, os filhos, também lembra que nossa cultura é marcada pela ausência paterna, cuidar de crianças é no Brasil ainda visto como uma atividade feminina. De quanto ter foco em uma Copa do Mundo depende de estar ou não com a família? Pintar ou não cabelo, quando jogadores de outros países fazem o mesmo? Messi já platinou as madeixas nem por isso caiu em rendimento e os croatas levaram seus filhos para a Copa.

Porém, o que se pode argumentar é que isso ocorreu durante a Copa do Mundo, uma competição de apenas 30 dias. Uma competição que para a alma nacional  e para a geopolítica nada mais é que a 4 Guerra Ninja do anime Naruto, isto é, a competição das competições, a guerra das guerras, a consagração dos heróis em combate. Nada maior no aspecto do masculino! Nada maior para o homem brasileiro!

Para isso, espera desses guerreiros que eles se enquadrem dentro do padrão: sejam quase sujos, sem vaidade, dentes arregalados, sem acessórios, caras amarradas, sem choro, frios e ausentes da família. Não sei como não debatem que “ é preciso ter o pau duro”.  E isso é tão real que o próprio Uol fez uma matéria em 2021 comparando o volume das calças de Neymar, Messi e Mbappé, ganhando o jogador francês. Porque no fundo, o que essas discussões querem dizer é que esses jogadores não foram machos o suficiente na acepção do que seria macho para o patriarcado do futebol.

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