Prometeu acorrentado

“O país segue se desindustrializando e ficando frágil dentro da lógica imposta pelo Consenso de Washington”

(Foto: Reprodução)

Apesar de tradição escravocrata e latifundiária responsável por fissuras sociais, uma confluência de classes nacionalistas desencadeou em nosso país a partir da Revolução de 1930 um acelerado processo de industrialização, que nos posicionou em pouco mais de meio século como uma das grandes potências econômicas mundiais.

Com parque fabril completo formado por empresas estatais em ramos estratégicos (petroquímica, siderurgia, aeronáutica, etc.) e alto índice de internalização de cadeias produtivas complexas (automobilística, naval, informática, etc.), para além da influente participação no mercado mundial de commodities, passamos a ser atacados por autoridades estrangeiras como o secretário de Estado estadunidense Henry Kissinger, que destacou que não seria permitido o surgimento de um novo Japão ao Sul do Equador.

No último quartel do século XX, fatores externos como a queda de commodities exportadas e a alta do petróleo importado prejudicaram nossa economia, que embarcou em perigosos empréstimos a juros flutuantes. Mesmo mantendo processo substitutivo de importações, a queda da balança comercial e o agigantamento dos juros cobrados produziram um embarque às cegas no Consenso de Washington pelo caminho do Plano Brady, que aparentou reestruturar dívidas em troca de privatizações e outras medidas desregulamentadoras da economia nacional.

Com Fernando Collor aprova-se com pouco critério a lei de informática e começa o desmantelamento de estruturas como a Portobrás e as legislações carboníferas, em cenário de baixo crescimento que encerrou as atividades de várias empresas. Com Fernando Henrique, se estabelece a paridade cambial que viabiliza importações predatórias (têxteis, ceramistas, maquinários, etc.) e a prática de juros escorchantes, que travam investimentos produtivos e agigantam as margens de lucros especulativos. A dívida pública passou a drenar mais da metade do orçamento público. Neste contexto dos anos 1990 são eliminadas ou reduzidas empresas como a Mafersa (vagões metroviários), a Villares (elevadores) e a Gurgel (automóveis), assim como centenas de produtoras de bens de consumo, redundando em alta súbita do desemprego.

No mandato de Lula, em movimento de alta das commodities, importantes dispositivos como o BNDES e política de conteúdo nacional associado ao petróleo, juntamente com programas como o PAC, viabilizaram o crescimento de cadeia de fornecedores, a exemplo do setor naval e de grandes construtoras, que inclusive exportaram serviços para vários países na esteira da tradição do mundo desenvolvido. Por outro lado, o positivo incremento da renda popular não engendrou o fortalecimento das cadeias internas de valor pela manutenção de política de âncora cambial, juros altos e poucos dispositivos de defesa industrial, fazendo com que servíssemos de mercado consumidor da China e de outros países mais competitivos.

A queda das commodities que seguiu e a ausência de política industrial em momento anterior engendraram forte crise nos governos de Dilma e de Temer, sobremaneira agravada pela Operação Lava-Jato que eliminou mais de 2 milhões de empregos e inviabilizou as atividades de empresas mundiais geradoras de multiplicadores econômicos.

A retórica liberal de Bolsonaro, não obstante parecer inovadora, segue a tônica da gestão nacional dos últimos 30 anos. A queda dos juros seguindo movimento mundial mitigou as dificuldades de gestão da dívida pública provocadas pelas demandas da Covid-19, ao passo em que a desvalorização cambial tem gerado receitas de exportações. Entretanto, interessa destacar desmonte de estruturas geradoras de multiplicadores econômicos como o sistema de refino da Petrobrás e o setor de obras públicas. A taxa de câmbio, embora em nível melhor que outrora, associada à falta de segurança provocada pela estrutura de relações públicas do governo, ao invés de gerar investimentos para substituir importações de insumos, tem produzido a falta deles e desdobrado em quadro inflacionário no bojo de cenário de reduzido consumo popular (estagflação), apesar do necessário auxílio emergencial.

O país segue se desindustrializando e ficando frágil dentro da lógica imposta pelo Consenso de Washington, com a propositura da autonomização do Banco Central sendo o coroamento de todo o processo, já que elimina qualquer possibilidade de organização da sociedade civil no sentido de engendrar políticas econômicas, deixando a cargo de banqueiros que lucram como em nenhum lugar do mundo uma força institucional superior ao STF ou as Forças Armadas.

Nosso país em muito se parece com o titã grego Prometeu, que roubou o fogo de Zeus para salvar os homens da extinção, sendo punido acorrentado num rochedo enquanto um abutre devorava o seu fígado pela eternidade. Esperamos que mais uma vez confluências nacionalistas da sociedade  consigam produzir um Hércules para nos resgatar dessa situação vexatória.

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