“Que horas ela volta?” Marca de um país patriarcal, racista e elitista

O pano de fundo do longa-metragem é a crítica social aos papéis de classe e gênero atribuídos às mulheres no Brasil

Filme "Que Horas ela Volta", de Ana Muylaert

A produção do filme ‘Que horas ela volta?’, sob direção de Ana Muylaert, foi lançada em 2015 e conta a história da recifense Val, interpretada por Regina Casé, em suas labutas de 20 anos como empregada doméstica em casa de família da classe média alta em São Paulo.

Muylaert aborda a típica luta de classes do capitalismo contemporâneo, justamente por trazer a relação entre o poderoso que detém a riqueza e aquele (a) que o (a) serve.

Este é mais um filme que assisti mais de uma vez. Até porque o recomendei para debate com alunas no Grupo de Estudos Pesquisa, Trabalho, Gênero e Violência Doméstica e Familiar (Getravi), que coordenava em uma instituição de ensino superior de Curitiba e que foi apresentado como artigo em eventos de iniciação científica e congressos, tendo seu significado por versar por múltiplas dimensões: classe, gênero e raça.

O pano de fundo do longa-metragem é a crítica social aos papéis de classe e gênero atribuídos às mulheres no Brasil. A história de Val é transversalizada por diferentes realidades, pela relação problemática com sua filha Jéssica (Camila Márdila), pelo afeto que tem com o filho de seus patrões e pela tumultuada convivência com a sua patroa Bárbara (Karine Teles). A patroa fica enciumada com a relação de Jéssica com o seu marido e filho, e enfatiza uma persistente observação para que empregada e filha se enquadrem em sua condição de subalternas, de empregada doméstica e filha de empregada dentro de sua propriedade.

Jéssica sai do Recife e vai a São Paulo para prestar vestibular para o curso de arquitetura. Desnudam-se valores patriarcais e a condição de subalternidade histórica presente nas relações sociais e na divisão sexual e técnica do trabalho. Nisso desvela a realidade de milhares de mulheres empregadas domésticas que precisam deixar seus filhos aos cuidados de outras pessoas, muitas vezes de outras mulheres, para poderem assistir os filhos da patroa. Da figura da babá, resquício da escravatura, à empregada doméstica, a família burguesa brasileira subsiste fundada na opressão e exploração, principalmente das mulheres negras e pobres, sejam elas babás, diaristas moradoras ou não em um quarto minúsculo, escondido nas casas ou apartamentos, como mostra o filme.

Filme “Que horas ela volta”

No Brasil a opressão se perpetua e se materializa inclusive na planta baixa das residências. Desde as senzalas, passando pelos anos 20, quando começaram a aparecer os quartos de empregada nas casas, criou-se uma delimitação espacial de qual é o espaço do patrão e qual é o espaço do escravizado (a), erro meu, empregado (a). Jéssica quando chega do Recife cria uma ruptura no statuos quo da família burguesa ao transgredir essa delimitação espacial patrão/empregado de forma espontânea e natural, sendo ela mesma: uma convidada na casa de outra pessoa, que também é a casa de sua mãe Val há muitos anos, mas que acaba sempre cerceada pela mãe (e indiretamente pela patroa, que faz um verdadeiro misancene), para que não se sentasse à mesa ou entrasse na piscina, mesmo sendo atirada na água pelo filho da patroa.

O simbolismo dado pela “ocupação” de Jéssica de alguns espaços da casa mostra um outro país, uma outra geração, que rejeita as imposições da Casa Grande que tenta impedir que a senzala ocupe papel relevante na sociedade. Também é exibido o assédio sexual sobre as meninas e mulheres mantidas historicamente como numa prisão no espaço privado.

Sem dúvida, o ponto alto do filme refere-se a cena em que Jessica, é jogada na piscina da casa por Fabinho (Karine Teles), filho dos patrões, causando uma fúria em Bárbara, que pede para esvaziar a piscina, alegando que viu um rato e que precisava desinfeta-la, revelando de forma muito forte o ódio de classe. Lembrei da canção do inesquecível Cazuza: (…) A tua piscina tá cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos / O tempo não para (…).

No final do filme, Val tem a notícia que Jéssica passou no vestibular. É um momento de glória, é a confrontação depois de 20 anos trabalhando na casa da madame, quando Val sai da alienação histórica, se liberta das amarras da patroa. Val, em puro êxtase e alegria com a notícia da aprovação da filha, entra na piscina, se lavando de todo ranço depositado sobre seus ombros pela patroa: Val finalmente respira. Como bem destacou Vandré Fernandes em resenha do filme para o portal vermelho em 18 de setembro de 2015: “A cena é uma poesia. O sorriso de Casé jogando água para frente, lavando os braços e o rosto, pode se transformar numa das cenas mais antológicas do cinema brasileiro. Ela perfila ao lado de Norma Bengel em os ‘Cafajestes’ e Othon Bastos, na morte de Corisco, em ‘Deus e o Diabo na terra do Sol’.”

O filme de Anna Muylaert mobiliza sentimentos, estimula tomadas de consciência e revolta, justamente por retratar de forma tão natural a ascensão das camadas populares a outro patamar, uma vez que Jéssica passa no vestibular no curso de arquitetura em uma universidade renomada no país, enquanto o filho da madame não consegue colocação. A diretora da película se compraz em mostrar essa subversão da suposta ordem natural das coisas.

Filme “Que Horas Ela Volta”

O filme foi lançado em período onde começavam a se esboçar sinais de algumas mudanças sociais no Brasil, depois de anos de governos democráticos preocupados com as classes menos favorecidas, em que aparecem fenômenos de alguma mobilidade social, com pessoas oriundas dos estratos inferiores da pirâmide social passam a, por exemplo, poder frequentar Universidades. Simultaneamente ficam mais nítidos os preconceitos das elites burguesas e de parte das ditas classes médias em relação aos ainda modestos avanços sociais decorrentes dos 13 anos de governos progressistas pós-2003.

A aprovação da PEC 72, mais conhecida como a “PEC das domésticas” (pela qual os trabalhadores domésticos adquiririam direito a uma jornada de trabalho de 8 horas diárias, totalizando 44 horas semanais, e com hora-extra remunerada) inflamou a ira das elites. O atual presidente genocida, por sinal, foi um dos deputados que votou contra a PEC 72. Em manifestações contra a democracia liam-se cartazes segurados pelos participantes, homens e mulheres brancas, que se colocavam contra essa PEC, além de frases de profundo desrespeito a uma presidenta eleita democraticamente, mas deposta por um golpe reacionário, machista e misógino.

Um país menos desigual, com um pouco mais de justiça social, permeado por processos democráticos, como na elaboração de algumas políticas públicas, estava sendo construído, mas tudo isso foi dramaticamente interrompido e mutilado por numerosas medidas contra os interesses do povo brasileiro e da nação.

Nesse contexto, intensifica-se a responsabilização das mulheres pelas expressões da questão social e, para tal, a ideologia patriarcal é acionada ao máximo. A desresponsabilização do Estado com as políticas sociais, repassa para as famílias, ou melhor, sobre as mulheres, uma vez que no regime patriarcal as mulheres são vistas como um ser que naturalmente tem a obrigação de estar a serviço/cuidado dos outros, ainda que isso custe todo o seu tempo e se dê em detrimento das suas necessidades e desejos.

Filme “Que Horas Ela Volta”

As trajetórias esperançosas das Vals e Jéssicas deste país foram subitamente juncadas por enormes pedras, postas pelas elites que entendem, míopes e egoístas que são, que a senzala sempre terá que ser senzala. O recado de “Que Horas ela Volta?” está dado e a terra não é plana. Por sinal, nem esfera perfeita ela é, assim como a luta por igualdade e justiça social também não está livre de muitos obstáculos. Há que se revitalizar a esperança, pois com muitas Jéssicas se poderá sonhar e fazer a indispensável transformação social.

Que a mudança de Val, influenciada por Jéssica fazendo-a tomar consciência da alienação em que vivia e o reencontro com sua identidade perdida, possam estar presente em milhões de mulheres brasileiras.

Para quem ainda não viu o filme, vale a pena assistir. E para quem já o viu, vale mais ainda revê-lo com o espírito acentuado da resistência e da esperança pelo fim da opressão e da exploração.

  • Filme: Que horas ela volta
  • Duração: 1h 52min
  • Gênero: Drama
  • Direção: Anna Muylaert
  • Roteiro: Anna Muylaert
  • Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsa

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