“Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada”

Ainda que a violência não tenha se materializado e que o golpe não tenha ocorrido de fato, não elimina o crime de Bolsonaro de ter atentado contra a Constituição

Fotomontagem feita por Artur Nogueira com as fotos de: Hugo Barreto/Metrópoles; Cottonbro/Pexels; Clauber Cleber Caetano/Pexels

Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Por quanto tempo ainda há de zombar de nós a tua loucura?
A que extremos se há de precipitar a tua audácia desenfreada?”

Marco Túlio Cicero

Na semana retrasada, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela não cassação da chapa Bolsonaro/Mourão. A absolvição se deu em decorrência da falta de provas, mas houve o reconhecimento de que os fatos que motivaram a ação ocorreram. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes enfaticamente afirmou que “Não podemos criar, de forma alguma, um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, o mecanismo utilizado nas eleições e depois das eleições”.

Ao pronunciar seu voto, o ministro do Supremo se referia às milícias digitais que atuaram impunemente nas eleições de 2018, espalharam mentiras a respeito dos adversários de Bolsonaro, disseminaram ódio e, com isso, manipularam os resultados eleitorais. Como também frisou Moraes, tais milícias continuaram atuando livremente no pós-eleição com as mesmas práticas, tendo como alvo, principalmente, os poderes Judiciário e Legislativo.

A forma enfática com que Alexandre de Moraes se pronunciou não se deu única e exclusivamente para apontar que nas eleições de 2022 não serão admitidas tais práticas, visto que será ele a presidir o Supremo Tribunal Eleitoral. Deu-se também por estar sob sua condução o inquérito dos atos antidemocráticos, que investiga, em especial, os ataques aos membros do Supremo Tribunal Federal, cujos métodos e mecanismos são os mesmos utilizados na campanha eleitoral bolsonarista.

Tais atos antidemocráticos tiveram como ápice o 7 de Setembro, quando um grande número de bolsonaristas foi às ruas evocando as mesmas bandeiras antidemocráticas de atos anteriores, ou seja, fechamento do Congresso e do Supremo e intervenção militar com Bolsonaro no poder. Desta forma, para muitos, foi apenas a repetição do mesmo, apenas com mais gente do que nos atos anteriores. Que, portanto, não se colocava novidade alguma.

Os acontecimentos que conduziram ao 7 de Setembro, os fatos ocorridos no dia e seus desdobramentos, no entanto, devem ser analisados de forma distinta. Diferentemente dos atos anteriores, que eram apenas manifestações autoritárias que atacavam os demais poderes, a real intenção nesse último Dia da Independência era a de estabelecer uma ruptura institucional por meio de um golpe de Estado. Os fanáticos que se dirigiram às ruas naquele dia estavam convictos de que aquele seria o dia do acerto de contas.

Nos dias que se seguiram, o senador Randolfe Rodrigues apresentou uma notícia-crime junto ao Supremo, na qual imputa a Bolsonaro os crimes de atentado contra a ordem constitucional, o Estado Democrático de Direito e a separação dos Poderes. Instada por Carmem Lúcia a se manifestar, a Procuradoria Geral da República respondeu à ministra nesta última sexta-feira, afirmando que “Não tendo havido o emprego de violência ou de ameaça, limitando-se o noticiado à imprecação verbal, ou quaisquer outras atitudes e comportamentos que não sejam aptos a anular ou dificultar significativamente a capacidade de atuação do poder constitucional, não há crime”. Segundo o vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros, que assina a manifestação, a conduta de Bolsonaro não passou de “arroubo de retórica”

Foto: Hora do Povo/Reprodução

Em primeiro lugar, talvez devêssemos recomendar ao vice-procurador que lesse mais atentamente o artigo 85 da Constituição Federal que qualifica os atos classificados como crimes de responsabilidade do Presidente da República. Entre outros, o inciso II afirma claramente que constitui crime de responsabilidade atentar contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação.

No jogo de palavras, Humberto Medeiros insinua que, ao não empregar a violência ou ameaça, o que Bolsonaro fez foi única e exclusivamente falar mal dos demais poderes, constituindo-se seus atos tão somente em “arroubo retórico”. Tratou, para livrar a cara do fascista, de isolar o ato do dia 7 de Setembro de todo o contexto que envolveu sua preparação e da real intenção a que o movimento se propunha. Somente para o mais absoluto ingênuo ou para alguém movido por segundas intenções, é possível admitir que toda aquela massa se reuniu tão somente para ouvir mais um dos discursos destemperados do genocida.

Para quem tem alguma dúvida de que ocorreu crime de responsabilidade, devia se perguntar por que no dia seguinte Bolsonaro deu uma guinada de 180 graus, chamou Temer para redigir uma declaração e até mesmo ligou para Alexandre de Moraes. Estaria ele tentando demostrar que talvez estivesse sendo mal-entendido?

Obviamente que não. É de conhecimento público que lideranças dos caminhoneiros, que passaram a mobilizar a categoria para invadir Brasília e organizar bloqueios em todas as rodovias do país no dia 7, antes de iniciarem a convocação, estiveram reunidos com Bolsonaro. É também de conhecimento público que Eduardo Araújo e Sergio Reis também estiveram reunidos com Bolsonaro dias antes do vazamento do áudio de Sergio Reis afirmando que iriam invadir o Congresso e quebrar tudo.

Mas o mais revelador do crime praticado veio na recente carta de ressentimento de Roberto Jefferson. O até então aliado de Bolsonaro e entusiasta mobilizador afirma com todas as letras que o “7 de setembro ficou imaculado. Todo o povo saiu às ruas para dizer, eu autorizo, não havia volta, não havia transigência com as velhas práticas. Mas por algum motivo, Bolsonaro fraquejou. Não teve como seguir. Escrevo isso insone. Não preguei meus olhos. Esse pensamento queimou minhas pestanas, não consegui fechar meus olhos e dormir”.

Ou seja, indícios de que houve convocação para um golpe de Estado que ocorreria no dia 7 de Setembro não faltam. Sinais concretos de que Bolsonaro não só promoveu a incitação ao golpe, mas, mais grave ainda, de que ele próprio promoveu a convocação do golpe, também não faltam. Tal golpe só não ocorreu porque o braço armado militar e os aparatos de segurança com os quais ele imaginava contar não deram resposta ou recuaram na hora H. Ainda que a violência não tenha se materializado e que o golpe não tenha ocorrido de fato, não elimina o crime de Bolsonaro de ter atentado contra a Constituição.

Diante de tantas evidências, fica claro que não precisaria muito esforço do Ministério Público ou mesmo de uma CPI do Congresso para materializar provas de que o crime de responsabilidade foi praticado. Fica evidente também que Lira e Ciro Nogueira devem ter demonstrado a Bolsonaro que estavam postos todos os elementos para a abertura de um impeachment e que, caso ele não recuasse, o processo seria inevitável. Dessa forma, convenceram o fascista a ligar para Alexandre de Moraes e a chamar Temer. Em troca do recuo, decidiu-se passar panos quentes na situação e salvar o mandato do genocida.

Todos sabemos o que aconteceu. Todos sabemos que houve a convocação e a tentativa de um golpe de Estado. Todos sabemos que o mais grave crime de responsabilidade foi cometido e, no entanto, decidiu-se pelo acordo de impunidade em troca de um suposto recuo. Bolsonaro recuou porque não teve força para consumar o golpe, mas isto não significa que tenha desistido do sonho de ser um ditador. Assistimos a esse acordo de bastidores e não fizemos ou não pudemos fazer nada. Resta-nos duas opções no momento: ou nos jogarmos com forças redobradas na mobilização pelo “Fora Bolsonaro”, ou ficarmos nos lastimando e nos perguntando passivamente até quando abusarão de nossa paciência.

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