Reginaldo Rossi, o rei dos sem rei, e Miguel Arraes

.

Foto: Marcos Hermes / Divulgação

No domingo 20 de dezembro, completam-se 7 anos sem Reginaldo Rossi. Para ele escrevi esta pequena homenagem no Dicionário Amoroso do Recife:

Quando eu era menino, gostava de impressionar a professora Termutes, lá no Ginásio Ipiranga em Água Fria. E o modo de impressionar a doce Termutes era um tanto oportunista: para mostrar compreensão de gramática, eu escrevia lá no meu caderno do dever de casa, por exemplo, “Jesus Cristo é o rei dos reis”. Isso me levava a ser olhado com atenção por ela, que parecia se perguntar, de onde esse menino tira tais imitações?

Esse “rei dos reis” me veio agora ao procurar um título para esta lembrança de Reginaldo Rossi. A intenção não era bem profana, era de esperteza, porque cheguei a pôr o título de “Reginaldo, o rei dos reis”, mas me corrigi a tempo, porque não devo enganar a boa-fé de ninguém. Portanto, sejamos sinceros, desde o começo. Aqui não haverá fraude ou burla. Acompanhem o que conto, por favor.

Lembro de um comício de Miguel Arraes em 1986, em campanha para governador de Pernambuco. Isso se deu na praça da Vila dos Comerciários, em Casa Amarela, no Recife. Camisa aberta ao peito, calças justas, cabelo black power, Reginaldo Rossi era uma atração máxima, aquela que chamava o público mais despolitizado. Arraes sempre foi um político de ideias de esquerda, mas isso ele fazia ao lado de um grau imenso de pragmatismo. Quem era o rei que atraía o povão? — Reginaldo Rossi. Então vamos a ele. E assim foi.

É verdade que Reginaldo Rossi sempre esteve ao lado de um ideário que se assemelhava à esquerda. O que é isso? Era não ficar ao lado dos que apoiaram a ditadura. Mas o diabo é que Reginaldo sabia do poder de sedução da sua arte, e não se intimidava diante dos deuses mais sagrados da esquerda em Pernambuco. O que isso queria dizer, amigos? Imaginem e acompanhem. Quando ele tomou a frente do palanque, depois das palavras de apoio ao líder Arraes, em uma fala misturada de gíria maluca dos palcos e do povão, o rei Reginaldo mandou ver:

“Ai, amor
Você diz isso com jeitinho
Ai, amor
Quando eu te faço algum carinho
Ai, amor
Esse suspiro vem de dentro de você
Ai, amor
É tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor

Quando eu te aperto em meus braços, ai amor
E quando eu sinto teu mormaço, ai amor
Também suspiro e fico louco sem querer, ai amor
Essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus ‘ais’!
Ai, amor

Ai amor, também suspiro e fico louco sem querer
Ai amor, essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus ‘ais’!

Ai amor. Ai, ai.”

A essa altura, o povo aumentou na praça, em grupos os mais caóticos, chamados primeiro pelo som dos alto-falantes que estrondava com a voz de Reginaldo Rossi. Mas não só. E vamos ao mais importante: além da letra da canção, quando ele cantava, havia uma entonação, ia dizer safada, mas não era isso.

Havia um tom de deboche, de saber o que a massa queria ouvir, pois ele sabia o que a população gosta de fazer e não declara de modo público. Quando Reginaldo suspirava, em voz quente, o apelo “ai, amor”, uma nuvem de poeira subia. As camisas giravam por cima das cabeças, que deliravam como se estivessem em uma encenação pornográfica, em um verdadeiro e popular império dos sentidos. Não era cinema, mas, sem olhos oblíquos do oriente, com olhos de índio do Recife, era um império dos sentidos. “Ai, amor”, Reginaldo repetia num requebro. Olhem, declaro que me senti muito envergonhado, ao mesmo tempo que não conseguia tirar os olhos do palco. E por isso, cravei os olhos no candidato Arraes, que estava recuado, mal escondido dos volteios dos quartos de Reginaldo.

No primeiro “Ai, amor”, foi bem clara a desaprovação do candidato. Ele olhou atravessado para o rei e pigarreou alto. Para quê? Reginaldo abriu um sorriso e os braços para um mais largo ainda “ai, amor, também suspiro e fico louco sem querer”. Então Arraes baixou a cabeça, como quem diz “isso é muito constrangedor, as bandeiras da frente ampla do Recife estão muito amplas para mim”, mas calou, e na continuação do “é tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor”, Arraes entrou em um mudo e imóvel silêncio. Para maior liberdade do rei Reginaldo, que tinha a massa de revoltados sem rumo na canção. Isso eu vi naquela eleição, e tratava essa lembrança até então como um fato curioso, cômico, entre a gravidade de Arraes e a interpretação de Reginaldo Rossi. Mas a morte de uma pessoa, vocês sabem, desperta na gente novos ângulos do que nem imaginávamos antes.

Havia em Reginaldo Rossi um tom escrachado, o que é diferente da depravação. Às vezes — é da natureza do escracho — havia também um tom chulo, que a higiênica e impoluta classe média chama de “baixaria”. Mas ao lado do apelo aos sentidos mais imediatos — ele queria fazer sucesso —, havia também um modo civilizatório em Reginaldo Rossi. Por exemplo, vem dele, em muitas frases de entrevistas, algumas das primeiras manifestações contra a homofobia, entre artistas populares. Vem dele também, numa terra de machos, duvidosos machos, que assassinam mulheres nos chamados crimes de honra, uma suavização do homem que vira corno. De Reginaldo Rossi jamais pôde vir qualquer palavra de reforço ao preconceito contra pobres e marginalizados.

Ai, amor. No comício de Arraes em 1986, o povo pulava, agitava-se, gritava, diante da ambiguidade do cantor a girar os quadris em movimentos que imitavam um coito em pé. Ou melhor, Reginaldo fazia movimentos, meneios do puro oferecer, um convite irresistível ao que virá, ou devia vir. Aqueles quadris eram uma representação do ato amoroso, da dor que não é dor embora lembre a dor.

Dor que não é dor embora lembre a dor. Acho que Reginaldo Rossi iria gostar muito, e por isso não tenho pejo nem vergonha de homenageá-lo da maneira a seguir: Reginaldo iria gostar muito de associar sua música a estes versos de Camões, o rei dos sonetistas em português:

“Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer”

Ai, amor. Mas por que faço este reconhecimento tardio? Porque nunca disse antes que para mim a canção A Raposa e as Uvas mereceria uma crônica à parte, que falasse dos amores suburbanos, cheios de cafonice e de sentimento? Mais, por que nunca esclareci, de modo mais preciso, que a composição A Raposa e as Uvas cantava a classe média dos subúrbios, porque os jovens então que eu conhecia nem sequer sonhavam com a lambreta, que era a moto daqueles anos, porque o sonho máximo dos pobres fudidos era ter uma bicicleta? (Fudidos mesmo, não fodidos.)

Por que somente agora escrevo? — É que o povo me deu uma lição no dia do falecimento de Reginaldo Rossi. O povo maior é pobre e sem vergonha. É pobre e sincero, mas seu sentimento não é miserável nem mesquinho. Foi de comover até as pedras as declarações de pessoas feias, como a estúpida juventudezinha alienada as chama, “gente feia”, foi comovente ver as domésticas, os motoristas, os garçons, as mulheres e homens enfim de todas as categorias profissionais, que sem vergonha e sem pudor gritavam no Recife, no dia do enterro:

— Rei. Rei, Reginaldo é nosso rei!

Creio que teria mais a dizer sobre Reginaldo Rossi. Mas não falo mais porque seria fora de tom. Termino aqui, por enquanto. Vaidade das vaidades, Reginaldo Rossi não foi bem o rei dos reis. Foi Reiginaldo, ou mais simplesmente, o rei dos sem rei.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *