Silvia Lorenso: Escrita – memória e poder para manter a vértebra

Ola equipe Lápis  Vermelho

Recebo com freqüência seus artigos e tenho visto gente boa escrevendo no boletim. Sou mineira de BH, moro num morro chamado Morro do Papagaio/Barragem Santa Lucia e no momento estou morando em SP por c

Escrevi esse pequeno resumo e gostaria de socializá-lo com vocês; caso achem interessante publicá-lo ficaria muito honrada. Tenho fotos e outras informações que julgo importante demais para ficarem apenas comigo, pois sei que poucos de nos temos a oportunidade de vir para os EUA para sentar num banco de universidade e conhecer a vida americana em dois lados: o lado rico (do pessoal das universidades, incluindo os negros bem sucedidos), e o lado  que vive a margem, como em qualquer outro lugar no mundo.

Tenho encontrado afro-americanos/as e conversado bastante. Estudo na mesma universidade na qual estudou o Martin Luther King (ele fez Teologia na Universidade de Boston) e ouço e vejo as manifestações por aqui.

“ – Senhor, Senhor, me deixa trabalhar na cozinha – nem vendedor, nem escrivão, me deixa fazer teu pão!!! –Filha, diz-me o Senhor, eu só como palavras.” (Adélia Prado)

Quando eu tinha treze anos, a minha melhor amiga foi com a patroa para  Vitória/ES passar as férias (férias para a patroa, claro!). No dia seguinte, eu acordei e ela não estava lá para eu contar como tinha sido meu sonho; ela não estava lá para eu mostrar a saia nova que minha mãe me presenteou; ela não estava lá para gente falar a respeito dos meninos que a gente andava “de olho”. Enfim, percebi que ela não estaria comigo dividindo a vida, naqueles próximos trinta dias. Naquele momento, o vazio de não ter a pessoa   que sabia de mim mais que eu mesma me fez encontrar na escrita o novo caminho para o diálogo. Peguei uma agenda e tracei uma ponte com minha amiga. Imagina que naquela época, o poeta da Cooperifa não havia ainda descoberto que “nóis é ponte e atravessa qualquer rio”. Minha amiga voltou, e nós entendemos  que rascunho é para passar a limpo.

Dez anos se passaram e quem viajou dessa vez fui eu. Não para outro estado, mas para outro país. De tanto falarem, vim conhecer a tal América. Na verdade, uma  parte de uma das Américas. Vim para os Estados Unidos pesquisar a literatura afro-americana. Do lado de cá do Atlântico preciso continuar a burlar o vazio, só que dessa vez não apenas da amiga, também da família, do namorado e  do Morro, de onde tirei a régua e o compasso para desenhar o mundo. Como ninguém atravessa duas vezes o mesmo rio com o mesmo balanço da correnteza,  mudei a forma do meu diálogo, embora tenha deixado inalterada a substância.

Ao invés de esperar trinta dias, no meu caso hoje eu teria que esperar um ano, envio por e-mail, frequentemente,  o registro dos diálogos imaginários que tenho com ela,  enquanto experimento as novidades  da diáspora africana.   Meu último registro foi a respeito da visita que fiz ao Harlem, famoso distrito negro em Nova York. E foi mais ou menos assim: 

 “Nilde, ontem fui à Meca!!(risos) Quando pisei no Harlem nao acreditei. O apartamento do amigo da minha amiga era mesmo no coração do Harlem. Imagina  você o que é vir a NY, ficar no Harlem e não ser  apenas uma turista louca para ver o povo, as coisas na Times Square! Era amiga de um da comunidade. Absolutamente interessante! Imagina a gente no centro de compras (cada promoção, minha filha!!!) e de repente chega um, chega outro, e quando voce vê, parece que você não fala outro idioma, que você não  é de outro país…Enfim, você está super à vontade porque você é negra e de alguma forma voce é uma irmã…Depois, quando cheguei em casa, eu pensei: -caramba! Tudo parecia tão normal, como se eu tivesse perto de casa, perto de  pessoas tão conhecidas.

Minha amiga, foi impressionante como teve afinidade e como eu me senti bem naquela ponto daquela cidade. A gente pensa que pra vir a NY  a gente precisa se preparar para se sentir um " nada" no mundo, de tão grande, amplo que é isso aqui…

Mas se você está no meio do Harlem, o sentimento é absolutamente diferente. Eu não vi a Estátua da Liberdade, nem o local em que estavam as Torres Gemeas – pontos obrigatórios para o turista convencional. Eu fui no Harlem! Dormi uma noite lá! Andei pelas ruas; vi as pessoas em horários diferentes do dia! Ouvi as músicas nos carros! Exatamente como no Morro, vi as pessoas sentadas nas portas, nas esquinas, nos salões, nas lojas.

Vi os nomes Malcon X e Martin Luther King nas placas das duas principais avenidas. Ouvi nomes como Ângela Davis sendo pronunciados por pessoas nas ruas, almocei num  restaurante com comidas típicas do Sul (Georgia, principalmente), li os jornais produzidos pela comunidade local, vi muitos negros (por quilômetro quadrado-risos!!!) em carros luxuosos, inclusive limousine, e outros tantos nas esquinas bebendo e negociando drogas; outros pedindo esmolas nas ruas e no metrô. Ouvi o "sotaque", o jeito diferente e musical de pronúncia das palavras; as expressões  típicas, o cabelo, a roupa, os acessórios, as propagandas…

Lembrei das minhas primeiras "aulas" sobre a temática racial com Hamilton Borges; dos encontros de formação da Juventude Negra e favelada em Belo Horizonte…Agradeci aos ancestrais a oportunidade única de viver tudo aquilo e renovei minhas energias. Sem palavras!!!”

Silvia Lorenso – Moradora do Morro do Papagaio/Barragem Sta. Lúcia BH/MG; Mestranda em Linguística e Semiótica USP; Bolsista da Fundação Ford e da Fulbright na Universidade de Boston/EUA.

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