Sobre Alfredo Bosi morto

Alfredo Bosi passeava sua graça elegante, sua ironia fina de cavalheiro – nada cáustica e toda sutil.

Em casa, trabalhando, leio, num dos grupos de rede social, a notícia da morte, por Covid, do professor e acadêmico Alfredo Bosi, 84 anos – meu mestre sem que ele o soubesse.

Eu era menino. Tinha entre 13 e 14 anos. Frequentava a biblioteca pública do Centro Cultural do Jabaquara. Já cometia uns versinhos e tinha ganas de me tornar um escriba que prestasse. Entro na sessão de adultos. Passeio os olhos pelas lombadas do muito ali escrito. Detenho-me no seguinte título: História Concisa da Literatura Brasileira. Autor: Alfredo Bosi. Lanço mão de minha carteirinha de sócio e levo o livro para casa. E mergulho no que talvez seja a mais impressionante história escrita de nossas letras.

De saída, leio:

“O problema das origens da nossa literatura não pode formular-se em termos de Europa, onde foi a maturação das grandes nações modernas que condicionou toda a história cultural, mas nos mesmos termos das outras literaturas americanas, isto é, a partir da afirmação de um complexo colonial de vida e de pensamento”.

Estava dada a largada, e estava eu preso para o resto de meus dias àquele que veio iluminar minhas tardes e minhas noites de labuta com as palavras. A partir deste trecho, o garoto – pré-adolescente e, mais tarde, amadurescente – mergulha no pensamento mais radicalmente dialético que se possa encontrar no campo dos estudos literários. O jovem aprendiz de poeta, por anos a fio, vai buscar aí as ferramentas para entender a enormidade que é a literatura brasileira.

Anos passados, já pai de família, aquele pró-moço irá encontrar seu ídolo, feito carne e simpatia, numa sala de aula quase-auditório do prédio da Letras, campus Butantã da USP. Diante de mais de cem estudantes, Alfredo Bosi passeava sua graça elegante, sua ironia fina de cavalheiro – nada cáustica e toda sutil.

Era o curso de Literatura Brasileira I – Modernismo. Sentado à mesa do tablado, o emérito da Universidade falava de Mario de Andrade. À certa altura de sua preleção, levanta-se e vai à lousa. Risca uma pauta de música, mete a clave de sol e demonstra o virtuose que era o desvairado poeta paulistano arrumando seus versos em notas musicais – assim, como quem faz isso todo dia, mozarteanamente distraído enquanto conversa.

Tomei um sete no trabalho de avaliação, ao final de seu curso. Para mim, foi o mesmo que um dez. Este sete me deu duas lições: a primeira: Bosi era Bosi e, pra chegar a Bosi, muito pirão um sujeito há de comer. A segunda: passavam a ser suspeitíssimos todos os dez e noves e oitos recebidos, antes e doravante, de outros professores.

Hoje, só me resta lamentar a perda daquele a quem considero, ao lado de Ferreira Gullar, como uma espécie de pai literário. Com ele, não aprendi somente a entender literatura. Com Alfredo Bosi aprendi a apreender e entender o Brasil e sua história intelectual.

Até sempre, Professor.

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