“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

O Brasil, novamente, é chamado a esse desafio – e que belo desafio, pois nenhuma bandeira nos uniu mais na história do que a democrática, e, agora, diante de tantos riscos, haverá de fortalecer a unidade nacional, pois se soma a uma tarefa ainda mais sublime: a de defender a vida dos brasileiros.

Campo democrático tem menos de três anos para encontrar um acordo mínimo

Uma linha divisória estabeleceu-se muito claramente no Brasil.

Uma linha que divide a democracia e os que se opõem e conspiram contra ela.

Feito um corte histórico a partir da Revolução de 30, quase um século depois, verificaremos a insistente repetição de um fenômeno que representou permanente divisor de águas em vários momentos da história republicana.

Em 30, Getúlio Vargas, impulsionado pela campanha tenentista e outros movimentos sociais, chega ao poder após os barões econômicos que sustentavam a república envelhecida tentarem legitimar uma fraude eleitoral até então sem precedentes.

Dois anos depois, o governo revolucionário teve que aplastar o movimento golpista e conservador paulista, ironicamente alcunhado de “constitucionalista”, que buscava restabelecer a “velha ordem”.

As velhas oligarquias tentaram, a partir da ordem anacrônica que persistia em vários Estados, se assenhorar novamente do poder, resistindo às novas mudanças, o que levou Getúlio a atuar decididamente para preservar os objetivos da Revolução de 30, resumidos naquele período na luta pela industrialização do país e na criação de uma rede de proteção social e das novas relações de trabalho.  

Já no final do seu primeiro governo, em 45, restabeleceu-se, na medida em que as condições objetivas e subjetivas já estavam dadas, um sistema democrático que culminou na Constituinte um ano depois e na eleição, à época, de uma representativa bancada comunista no Congresso Nacional.

Em 50, diante dos retrocessos sociais e econômicos, Getúlio volta pelas urnas de forma consagradora, mas não demorou muito para que os golpistas e aves de rapina de sempre urdissem a sua derrubada, intolerantes com os avanços sociais e a ousadia revelada com a instituição do monopólio estatal do petróleo.   

O sacrifício da própria vida em 54 foi a única alternativa para impedir o golpe que estava em marcha e abrir caminho para os governos desenvolvimentista de JK e nacional-trabalhista de Jango, esse último principal herdeiro da era Getúlio e de suas conquistas no campo econômico e social.

As elites de então se organizaram para golpear novamente a democracia e impor, pela cúpula militar de então, um regime que infelicitou o país por 21 anos, submetendo-o a uma política de alinhamento aos interesses do império do norte, à exceção de breves períodos.

O preço para resgatá-la foi alto. Custou vidas, torturas, exílios, vidas clandestinas, cassações e perseguições de toda sorte.

Tornou-se necessária uma ampla frente política para frear a ditadura para a qual se tornou imprescindível a participação de figuras que deram sustentação ao regime ao longo de quase toda sua existência, empurrados pelos milhões que foram às ruas, primeiro, pelas diretas-já, e, depois, pela eleição de Tancredo no território do próprio regime, o Colégio Eleitoral. 

Foi uma demonstração eloquente da vitoriosa estratégia de reunir lideranças das mais variadas vertentes políticas e ideológicas em torno do objetivo democrático, resultando, apenas três anos depois, na promulgação da Constituição mais progressista de toda República.

Desde então, o país elegeu cinco presidentes, três dos quais reeleitos e dois afastados por processo de impeachment.

Com todas suas imperfeições e as perversas influências do poder econômico, entre outras deformações do sistema político-eleitoral, a democracia foi sendo exercitada, porém, sem que os sucessivos governos resolvessem questões estruturais capazes de retomar o projeto nacional-desenvolvimentista que estava em curso antes da ruptura de 64, ainda que alguns tenham conseguido promover importantes avanços no terreno social.  

Basta dizer que, de 1930 a 1980, ou seja, numa fase da história que abrange uma guerra mundial e alguns anos do próprio regime ditatorial, receptador e beneficiário, em grande medida, do período desenvolvimentista anterior, o PIB brasileiro cresceu a uma média anual de 6,48%, ficando atrás apenas do Japão, quando a indústria superou a economia primário-exportadora e teve um papel fundamental no processo de criação de uma sociedade urbana e moderna.

Com a redemocratização reinaugurada em 85 abriu-se um ciclo que, se considerado até 2019, em 35 anos, o crescimento médio anual do PIB do país foi de 2,31%, período no qual a indústria nacional foi ferida de morte por conta da política de importação subsidiada de produtos manufaturados e de elevado valor agregado. Milhares de empresas foram tragadas nesse período pelo capital estrangeiro, ocasionando a mais brutal transferência da propriedade privada nacional e estatal, com as privatizações, para o controle externo. Outro agravante: a participação da indústria de transformação no PIB, que chegou a 30% em meados da década de 80, atingiu seu patamar mais baixo: 11%!, quando vários setores ou desapareceram ou foram simplesmente sucateados.

O desemprego cavalar e as desigualdades gritantes que atingimos são o resultado direto do evidente retrocesso na estrutura econômica e produtiva do país.

O processo de emancipação econômica que se iniciou com Getúlio e chegou até Jango foi duramente interrompido sem que a reconquista democrática representasse sua retomada, apesar da sólida base constitucional da Carta de 88, gerando reiteradas frustrações populares.  

A última delas acabou desaguando na atual tragédia política, tanto pela rejeição às gestões anteriores como pela impossibilidade de construção de uma terceira via capaz de impedir infeliz polarização que se deu naquele momento.

Novamente, a democracia é colocada, literalmente, na marca do pênalti, vilipendiada e agredida, como nunca.

Bolsonaro e suas hordas foram, aos poucos, revelando a real natureza das intenções governistas: rasgar a Constituição Cidadã, a despeito de todos os retalhos que sofreu nas últimas décadas, e submeter os demais poderes à sua vontade quase medieval, a exemplo dos tiranos nazifascistas do século passado, aos quais se inspira recorrentemente, bem como a torturadores que agiam nos porões da ditadura.  

Os reiterados ataques ao Parlamento e ao Poder Judiciário desnuda a incapacidade de um governante conviver com adversidades e o desespero ante as investigações que, dia após dia, aproximam-se dele e de seu núcleo mais próximo, principalmente familiar.

A configuração de um estado paralelo integrado por milícias digitais e armadas é a prova de que o déspota de plantão não confia, nem mesmo, nos integrantes de seu próprio governo. O general Santos Cruz e o ex-juiz Sergio Moro que o digam. Multiplicam-se demonstrações de humilhação aos que não o seguem, como à cartilha obscurantista pregada por uma anta que mora na Virgínia, que, em vídeo recente, demonstrou que nem mesmo ele tolera mais Bolsonaro.  

O rumo empregado por Guedes à economia que descambou no pibinho de 1,1% em 2019 e promete provocar este ano a maior catástrofe econômica de todos os tempos, com a destruição de empregos e empresas, e na submissão aos rentistas, associado ao desastre na condução da pandemia, conformou um cenário dramático para a vida dos brasileiros e a democracia política.

Já são quase 40 mil vidas tragadas pela maior crise sanitária de nossa história, diante da qual Bolsonaro restringe-se a dizer em tom de deboche que é o “destino de todos”, enquanto seus adeptos tresloucados, inclusive ministros, pregam o fechamento do Parlamento e a prisão dos integrantes do Supremo.

Não havendo uma mudança nas políticas de enfrentamento ao coronavírus, a previsão é de que nos próximos dois meses poderemos chegar a 1 milhão de contagiados e 100 mil mortos, uma tragédia sem paralelo, que, agora, a loucura presidencial pretende esconder sob o falacioso e doentio argumento de que a mídia global faz uso dos dados para derrubá-lo.

Esse resultado, associado às consequências da política econômica, levou à desidratação do capitão de tal forma que hoje o debate é se os que o rejeitam representam 70% ou 80% da população brasileira, fenômeno que, se valesse para suas patentes, o faria retornar à condição de soldado raso e olhe lá.

Ocorre que, enquanto encolhe, torna-se mais agressivo e a, dissimulação neofascista, mais difícil.

A frente que está se conformando no país contra a maior de todas as ameaças à democracia é, pelas características do bolsonarismo, uma experiência absolutamente inusitada, pois já está sendo capaz de unir os mais diferentes e antagônicos, bastando que tenham algum compromisso com a democracia, pois ela é a única arma que dispomos no momento para recuperar os direitos, restabelecer a justiça e retomar a luta para completar o ciclo pela independência iniciado há quase um século.

Não por outro motivo, os grandes conglomerados econômicos, notadamente os forâneos e financeiros, recorrem, invariavelmente, ao fascismo para defender seus interesses fétidos e anacrônicos, quando não contam com governos que não passam de uma quimera democrática para representá-los.  

A realidade vai impondo uma convicção inexorável: as relações de produção capitalistas dependentes predominantes e, crescentemente, mono e oligopolizadas, no Brasil, tornaram-se, com o tempo, cada vez mais incompatíveis com o funcionamento de um sistema medianamente democrático na medida em que o aprofundamento das desigualdades sociais decorrentes desse modelo choca-se, permanentemente, com as variadas formas de participação popular, inclusive – e principalmente, no terreno eleitoral.  

A exacerbação da hegemonia do capital financeiro e a consequente concentração hedionda da renda e da propriedade, intrínsecos ao modelo atual, são fatores que conseguem conviver com a democracia por um tempo, mas não de forma duradoura.

Com Bolsonaro à frente do governo e Guedes da Economia essa contradição aprofundou-se, bem como se agravou com a pandemia, momento em que até mesmo os tradicionais representantes do pensamento liberal deixaram suas teses clássicas de lado para propor uma rápida e incisiva intervenção do Estado na defesa de vidas, empregos e empresas.

A hora continua sendo de exercitar a recomendável defensiva estratégica e de acumular forças, fazendo da Frente Ampla o principal instrumento da luta para que o país se liberte da ameaça fascista e, na sequência, retome o ciclo de desenvolvimento soberano indispensável para completar o processo de independência nacional, sem o que a democracia continuará fragilizada e ameaçada pelos cada vez mais diminutos moradores do andar de cima, cronicamente manipulados pelos de fora.

A democracia deve estar a serviço do objetivo maior de fazer do Brasil uma nação desenvolvida, justa e soberana, mas, para isso, uma tarefa precede: a de nos livrar, o quanto antes, de Bolsonaro, sua súcia e seu fascismo grosseiro.

Nessa hora, enfim, vencer a contenda democrática é premissa e condição para a consumação da tarefa sublime da emancipação nacional, pois a defesa da Pátria é a questão democrática que está na essência da luta nacional!

O Brasil, novamente, é chamado a esse desafio – e que belo desafio, pois nenhuma bandeira nos uniu mais na história do que a democrática, e, agora, diante de tantos riscos, haverá de fortalecer a unidade nacional, pois se soma a uma tarefa ainda mais sublime: a de defender a vida dos brasileiros.  

Não há como não recorrer às palavras do timoneiro da democracia, Ulysses Guimarães, que ainda reverberam fortemente e são escandalosamente atuais: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações”.

*A frase usada no título deste artigo é do deputado Ulysses Guimarães, ex-presidente do PMDB, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte 1987/1988.

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