Um Reino Unido

Duas vidas diferentes, entretanto unidas por irrefreável paixão, que Nelson Mandela descreveu como “uma brilhante essência de luz e inspiração” (Pode conter spoliers)

Filme "Um Reino Unido"

Um Reino Unido de fato? O enredo do filme contradiz o adjetivo, pois trata-se da luta entre o império britânico, um dos maiores colonizadores da Idade Contemporânea, e um país africano, como pano de fundo de uma história real de amor entre Seretse Khama (David Oyelowo) e a britânica Ruth Williams (Rosamund Pike).

O filme (de 2016) é bem desenvolvido em sua fotografia, figurinos e direção de arte, reconstituindo de forma primorosa a realidade da época (meados do século XX), embalados na trilha sonora de Patrick Doyle (que se tornou conhecido pelo trabalho em “Harry Potter e o Cálice de Fogo”, de 2005).

O romance começa na década de 1940, quando Khama, príncipe herdeiro de Botswana, país da África meridional, foi a Londres estudar Direito, ali conhecendo Ruth, uma estudante londrina branca. Duas vidas diferentes, entretanto unidas por irrefreável paixão, que Nelson Mandela descreveu como “uma brilhante essência de luz e inspiração”.(1)

O drama é dirigido por Amma Asante, cineasta, roteirista e ex-atriz, nascida em Londres, mas filha de pais ganenses, que dá vida a um filme que nos prende completamente, ao expressar a luta antirracista contra o apartheid para a libertação do povo africano do imperialismo inglês.

A produção mostra a história da violência e do racismo praticados pelos colonizadores europeus, contra os quais os diversos povos africanos resistiram em prolongados conflitos. Gana, palco onde desenrola o filme, tem também essa história de resistência.

Cena do filme “Um Reino Unido”

O amor entre Khama e Ruth, no entanto, foi maior do que as discriminações de cor e o estado de dominação britânica. Digno de nota na fotografia do filme a Londres dos anos 40, habitualmente cinzenta, em contraste com as cores vivas e quentes do continente africano. Em nossos dias, uma realidade assim ainda se faz presente. A luta pela libertação do imperialismo, do neocolonialismo e do racismo é uma exigência, em busca de uma sociedade livre, democrática, sem preconceitos e discriminação.

Nelson Mandela, primeiro presidente da África do Sul depois da remoção do regime segregador racista de apartheid, o mais importante líder da África Negra, vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993 e pai da moderna nação sul-africana, aludiu a esse romance. Madiba, ou Tata, como carinhosamente muitos tratavam Mandela, sublinhou a coragem desse casal por enfrentar e derrotar simbolicamente um império, história surpreendente que merece ser conhecida.

Lady Ruth Khama foi, assim, a primeira-dama do Botswana entre 1966 e 1980; um dos filhos foi presidente desse país africano até 2018. A paixão de Ruth com Seretse Khama atravessa imensos obstáculos, tanto do ponto de vista do racismo como pela rejeição da família de Khama. O casal resiste, ganha apoio popular e tem três filhos, sendo o mais velho nascido na África.

Em meio a conflitos e perseguições, a família foi exilada com apoio de uma coligação de tribos rivais, de dirigentes coloniais britânicos e do governo de apartheid da África do Sul. Seretse e Ruth não desistiram de um destino africano sonhado e regressaram ao então protetorado inglês da Bechuanalândia. Aí fundaram em 1966 um partido que alcançou o triunfo de tornar a antiga colônia em país independente, agora sob o nome de Botswana. Como seu primeiro presidente, Seretse criou as bases para que o país estivesse na atualidade no caminho da democracia, da independência e da prosperidade na África, embora na atualidade, apresentando profunda desigualdade social e enorme desemprego, segundo o Banco Mundial.

Seretse Khama e Ruth Williams

Ruth, mulher corajosa, conduzia ambulância durante a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, trabalhou como secretária em um grande banco, acabou conhecendo o marido em um baile, quando ele era estudante de direito em Oxford. A paixão assumida entre uma branca e um negro era na época caso raro, mas isso nunca desanimou a mulher. Ela foi presidenta da Cruz Vermelha e, desde a morte do marido em 1980 até a sua, em 2002, era tratada no Botswana como ‘Mohumagadi Mma Kgosi’, que quer dizer “mãe do chefe”. O filho Ian (Seretse Khama Ian Khama) foi presidente de 2008 a 2018, renunciando ao cargo em 31 de março de 2018, sendo substituído por Mokgweetsi Masisi, seu vice (2).

A luta pela libertação da dominação imperialista e pela derrota do racismo estrutural é exigência dos tempos atuais, em busca de uma sociedade livre, democrática, sem preconceitos e discriminação. A luta antirracista, sempre presente, foi intensamente reavivada nos EUA e no mundo pelo assassinato covarde de George Floyd, por policiais brancos da cidade de Minneapolis. Porém, no Brasil, quase todos os dias negros e negras principalmente pobres são vítimas de discriminação, violências e assassinatos (como o caso de Miguel e de tantas crianças e jovens assassinados no Brasil pela truculência policial), ainda isso infelizmente sendo encarado por boa parte da população de modo naturalizado. A luta contra o racismo se choca fundamentalmente com esse fascismo que se instalou no país, após o golpe de 2016. É preciso articular a luta antirracista e antifascista, para converter-se em uma batalha contra o capitalismo e os resquícios das formas de dominação anteriores (o escravismo, por exemplo, no Brasil, o apartheid, nos EUA). A luta é difícil contra essa sequela do longo período escravagista brasileiro, mas tem que ser feita cotidianamente, sem tréguas nem concessões. O simbolismo da história de afeto retratada em “Um Reino Unido” pode servir de inspiração também nesse sentido.

  • Título: Um Reino Unido (“A united kingdom”)
  • Data de lançamento: 29 de junho de 2017 (Brasil)
  • Diretora: Amma Asante
  • Baseado em: “Colour Bar”, de Susan Williams
  • Companhias produtoras: BBC Films; British Film Institute; Ingenious Media; Pathé.
  • Elenco: David Oyelowo, Rosamund Pike, Terry Pheto, Jack Davenport

    Disponível na Netflix

Notas e referências:

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