Um ringue, um dançarino, uma presidenta

Nunca gostei do boxe ou de qualquer outra luta. Desde sempre. Até hoje tenho dificuldades em compreender o esporte.

Assusta-me e incomoda-me um homem esmurrando o outro impiedosamente até que esse desmaie ou não tenha mais forças para se levantar. Incomoda-me mais ainda que alguém faça isso sem que o outro tenha lhe causado qualquer mal, tenha lhe feito qualquer ofensa. Não é uma briga de rua, na qual você responde a uma agressão. Não, é uma contenda na qual os adversários, livre e conscientemente, sobem a um ringue e, na presença de milhares de espectadores, trocam socos até que um deles caia vencido. Não gosto disso, ainda hoje.

Mas, criança ainda, virei fã daquele negro enorme que apanhava tanto nas lutas. E quanto mais sabia sobre ele, mais o admirava. Aquele boxeador dançava no ringue. Não era um pugilista, era um bailarino, para ficar no lugar comum, já repetido à exaustão. Mas vou correr o risco da repetição, mesmo assim. Era um bailarino. Acho que aquela dança, aquele balé no ringue, era que derrotava os seus adversários. O movimento das suas pernas era um pêndulo de hipnose para os seus desafiantes. Algo assim como as pernas tortas de Mané, que desnorteavam e desconcertavam os zagueiros adversários.

A outra coisa que fazia com que minha admiração por Muhammad Ali crescesse eram as suas posições políticas. Como não admirar um homem negro com a ousadia sem limites de desafiar o mais poderoso dos seus adversários e recusar-se a combater no Vietnã? Como não se identificar com um homem que colocou em jogo a sua carreira e arriscou-se a ir para a prisão para não abrir mão de um ideal? O menino encantado por histórias de heroísmo que eu era encontrava naquele homem um herói de carne e osso. O menino franzino que eu era, frequentemente vítima de valentões na escola e na rua, identificava-se com aquele lutador. Quando se recusava a combater no Vietnã ele me defendia dos meninos fortões, era assim que eu entendia. Quando defendia os negros dos Estados Unidos do ódio racista ele estava me defendendo. Não que eu entendesse muita coisa de política naquele então, mas sabia o suficiente para identificar o opressor e o oprimido, e para perceber que aquele gigante tomava o partido do mais fraco.

Encantava-me ainda, talvez mais do que tudo, a capacidade que aquele lutador tinha de apanhar sem cair. Naquele esporte pelo qual eu tinha tanta aversão, chamava a minha atenção como ele podia aguentar tantos golpes, tanta pancadaria, e continuar de pé. Tamanha resistência era, para mim, algo sobrenatural. Não era um homem, era alguma espécie de semideus, daqueles que eu encontrava na literatura e que tanto me fascinavam. O adversário batia naquele homem sem nenhuma piedade, disposto a lhe destruir completamente. E ele aguentava golpe após golpe, e ele bailava no ringue, e ele sangrava, e suas pernas bambeavam, e ainda assim aquele homem ficava de pé. E quando o adversário cansava, numa fração de segundo, num movimento por vezes imperceptível, aquele homem encaixava um golpe poderoso, saído das suas entranhas, arrancado do mais fundo da sua alma, e o levava a nocaute. Parece que toda a dor suportada valentemente durante a luta de repente se convertia em um golpe final, a fúria dos golpes suportados por mais de uma hora transformando-se em um único soco, capaz de fazer o outro beijar a lona.

Agora, que Ali se foi, fico a pensar no ringue da política brasileira. Nos últimos anos, uma pugilista da política tem apanhado diariamente de forma muitas vezes covarde e impiedosa. A presidenta Dilma foi e continua, ao longo de anos, a ser esmurrada sem nenhuma trégua. A misoginia reinante teve pontos altos de vilania, como o adesivo de pernas abertas na boca dos tanques de combustíveis de automóveis ou o xingamento da ala denominada “vip” de um estádio de futebol. Nada que se compare, evidente, ao festival de baixarias que foi o dia 17 de abril de 2016. A homenagem feita por um parlamentar fascista ao homem que torturou a jovem Dilma durante a ditadura foi, talvez, o momento de maior torpeza que a Câmara dos Deputados viveu nas últimas décadas.

E, com tudo isso, a “pugilista” Dilma resiste. Levada às cordas do ringue por várias vezes, muitas delas aparentemente sem capacidade de reação, Dilma resiste. E agora, no que aparenta ser o momento final de uma dramática batalha política, ela reage, e dispara socos em adversários desleais, que a atacam em bando sob o silêncio complacente e cúmplice dos que deveriam ser os imparciais juízes da luta política. Ganhando um reforço significativo das ruas, que buscam empurrá-la para a vitória, Dilma ainda tem forças para reagir. O futuro dirá se a reação foi tardia ou não, se ela não deixou que os seus desleais adversários a golpeassem por tempo demasiado.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor