Um sonho de três dias

Nós bem que podíamos falar do carnaval de Pernambuco somente com letras de frevos. É irresistível não começar por

“Tive um sonho que durou três dias
Foi um sonho lindo, sonho encantador
Eu dançando tu me conduzias
Ao castelo azul onde mora o amor

Tu cantavas assim
Bem pertinho de mim
Essa linda canção
Comigo a dançar
No rico salão

Este sonho real
Foi o meu carnaval
A mais grata emoção
Que já se passou
Em meu coração”

A intenção era navegar nas ondas dos frevos-canções de Pernambuco a partir de Um sonho que durou três dias, dos Irmãos Valença. Dissemos era, porque a vontade maior que dá agora é ficar repetindo este sonho até que se afundem os versos na lembrança:

“Tive um sonho que durou três dias
Foi um sonho lindo, sonho encantador
Eu dançando tu me conduzias
Ao castelo azul onde mora o amor”

Essa primeira estrofe, que mais nos vem, melhor, que somente ela nos vem, porque o mais, e o resto, não resistiria nem existiria sem ela, essa estrofe é simples, bela … e ingênua. A má vontade que dá em chamá-la de ingênua é esse “castelo azul”, um negócio bobo, sonho bobo de pobre a sonhar em ser nobre. Mas se é azul, e se lá mora o amor, convenhamos, tudo deve ser permitido, até mesmo um castelo, que, imaginamos, com maior ingenuidade, fica no alto de uma colina, em caminho coleante, enquadrado num quadrinho pequeno pintado a aquarela. O azul da água no pincel ainda pinga, no céu e no castelo. E que coisa mais sonhável, vamos a esse castelo a dançar, a subir e a dançar, com fôlego de menino e pulmões de jovem e pulsões arretadas de amante, como afinal deve ser nos sonhos. De que nos vestimos? De palhaço com um coração na bunda, com castanholas a bater nas mãos, a repetir, com um nó na garganta, “tive um sonho que durou três dias…”. Balançamo-nos assim como grandes meninos, como meninos crescidos, retardados, ora em um pé, ora em outro, contentes do seu brinquedo que é estar vestido de palhaço com um coração no traseiro, em roupa branca de seda, sem sangue, sem rugas, porque tudo é futuro e felicidade, porque vamos ao castelo azul onde mora, onde mora …

O mais estranho dessa estrofe é que o amor é um sentimento que parece viver sozinho, no castelo azul lá no alto, aonde subimos cantando. Nossa cabeça é um pêndulo, ao som de castanholas. O bom é lá em cima, onde mora o amor. É um castelo dos castelos da infância, daqueles muito encantados, porque nos seus limites um feitiço gera um sentimento ótimo. O amor vem do castelo, lá é que é, e por isso vamos como meninos excepcionais, porque acreditamos nesse feitiço, nessa quimera de um lugar onde reside o amor. Daí que subimos a balançar nossos cabeções de palhaço, felizes, de coração na bunda e castanholas na mão, calças de seda sem vinco e folgadas, no inconsciente uma certeza de que a dor vai deixar de existir, atenção, menino grande, porque vamos a um lugar lá no alto onde mora o amor.

Por incrível que pareça, ainda não é isso que nos deixa encantados com a estrofe criada pelos Irmãos Valença. Onde eles se excedem mesmo, onde eles nos alcançam e persistem em nossa cabeça até que fiquemos loucos, até que procuremos por toda a cidade a sua composição, e voltemos para casa frustrados sem nada achar, o que nos mata de buscar na web a música, o que nos deixa com um ar de idiota, de apaixonado que perdeu até a vergonha na cara, é este “Tive um sonho que durou três dias”. Que construção, que achado – essa linha evoca tudo, essa linha constrói tudo, dá vontade de gritar, parem, por favor, seus irmãos malucos, deixem-nos numa rede de olhos fechados, sem mais nada, somente a nos repetir, tive um sonho que durou três dias, porque vemos e passam diante de nós os mascarados, os zorros, os índios, as mulheres odaliscas, as pernas, os seios que não alcançamos, que nos eram proibidos, por castigo, por moral cristã, por idade, porque afinal éramos meninos. Somos, pelo menos enquanto não atinjamos o castelo, aquele, azul, bem azul, lá no alto, onde mora o amor.

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