Uma eleição em meio às ruínas do sonho americano

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Foi dada a largada da corrida presidencial norte-americana com a indicação de Trump, para concorrer à reeleição pela convenção republicana, e de Biden, como candidato pela convenção democrata. Nos discursos dos candidatos e dos principais personagens dos dois atos, ficaram claras as sinalizações de qual será o tom da campanha. Da parte dos democratas, a ênfase de que Trump é uma ameaça à democracia e do lado dos republicanos, de que Biden é uma ameaça à ordem e à segurança. Mas a que democracia se refere Biden e a que ordem e segurança se refere Trump?

O processo eleitoral americano é deveras complicado. O presidente é eleito por um colégio eleitoral de 538 delegados. Cada estado da federação tem direito a um número de delegados proporcional à sua representatividade no Congresso que, por sua vez, é proporcional à população. Cada estado tem suas próprias regras, mas, em quase sua totalidade, o candidato que vencer leva ao Colégio Eleitoral todos os delegados, mesmo que a vitória seja por uma pequena margem. Isto torna a eleição um jogo de xadrez, pois ter a maioria dos votos populares nacionais, como aconteceu com Hillary Clinton, não significa necessariamente que sairá vencedor.

Mas, antes disso, para o indivíduo ser candidato, precisa disputar as primárias que definem o candidato de seu próprio partido, funcionando como uma pré-eleição. A exemplo da eleição principal, também nas primárias cada estado possui regras próprias. Em alguns, só os filiados ao partido votam, em outros, porém, qualquer cidadão pode votar. A votação, em cada estado, não vai direto para o candidato, mas elege um determinado número de delegados, comprometidos com o candidato vencedor, que irão votar na convenção partidária. Em resumo, quando se chega na convenção, já se sabe quem é o vencedor. Como as primárias não são realizadas em todos os estados simultaneamente, à medida que vão ocorrendo, os candidatos que já não conseguirão delegados suficientes vão desistindo pelo caminho, de forma que, de um modo geral, próximo à convenção resta um único pretendente à indicação. Ainda que nem todos tenham desistido antes, o vencedor na convenção já estará definido antecipadamente.

Complicado?

Sim, extremamente complicado, mas é este o sistema eleitoral norte-americano desde a formulação de sua constituição. Sendo até mesmo as primárias um processo bastante complexo, embora haja plena liberdade de organização partidária, torna-se praticamente proibitivo à participação de outros partidos que não os democratas e republicanos. Apenas duas vezes na história americana um terceiro candidato, fora dos dois partidos principais, obteve delegados no colégio eleitoral. E foi um número ínfimo. Diante de tais dificuldades, e como a eleição se dá em turno único, os demais partidos ou simplesmente não participam ou se alinham direto com os dois principais candidatos, ainda que não haja grandes afinidades.

Poderíamos dizer que esse sistema eleitoral é pouco ou nada democrático, mas provavelmente o cidadão americano está pouco se importando com isto. Em primeiro lugar, porque os Estados Unidos, em toda sua história, não conheceram ou experimentaram outro sistema. Em segundo lugar, pois para o cidadão comum o conceito de democracia não está assentado no sistema eleitoral que regulamenta a escolha de seus representantes. O conceito de democracia para os indivíduos americanos está relacionado ao American way of life, modo de vida americano.

A chamada “maior democracia do mundo” se estruturou em um conceito de quase absolutização do direito individual e é uma das maiores causas da sua tragédia sanitária hoje. Uma das mais polêmicas inciativas de Obama foi a tentativa, diante do crescimento do empobrecimento de parcelas da sociedade estadunidense, de reforma do sistema de saúde. Ocorre que na mentalidade tradicional do americano, cada cidadão deve pagar o seu próprio plano de saúde de forma a ter o direito de escolher o seu médico e escolher o hospital que achar mais apropriado. Democracia, para os americanos, significa pagar e poder escolher a escola para seus filhos. Significa conquistar, por seus “próprios méritos”, as condições para adquirir o carrão de último modelo, o iate dos sonhos, o jatinho executivo, a mansão ou apartamento de luxo, as roupas de grife. A democracia americana é sinônimo de individualismo. A sociedade democrática americana é sinônimo de sociedade de consumo. Nessas condições, uma vez que não existe um sistema público de saúde e o custo médico/hospitalar é muito alto, inúmeros óbitos decorrentes da Covid aconteceram em casa ou porque a busca de assistência médica/hospitalar ocorreu muito tarde para aqueles que estavam desassistidos de planos.

Até mesmo o tão propalado direito de liberdade de expressão e manifestação tem um caráter individual na sociedade americana. Aquela cena, mostrada em todos os noticiários, do casal ameaçando os manifestantes do movimento Black Lives Matter, ele com um fuzil e ela com uma pistola, é emblemática. Nos Estados Unidos é totalmente admissível e tolerável que qualquer indivíduo manifeste suas opiniões até mesmo circulando com uma cruz suástica no braço ou vestindo a indumentária Ku Klux Klan. Mas quando se trata de manifestações coletivas, concentrações, passeatas, aí a situação complica. Manifestações coletivas podem representar uma ameaça ao sagrado direito de propriedade privada individual. E para defender a propriedade individual privada, cada cidadão deve ter o direito de possuir o seu próprio arsenal bélico em casa.

Em uma sociedade com baixos índices de pobreza e empregabilidade quase plena, tal modelo “democrático” pode ter resultado. Mas quando esses dois indicadores começam a se desestabilizar, a tal supremacia do direito individual começa a desmoronar. As condições de vida dos norte-americanos já vinham se deteriorando de forma acelerada e com as consequências da crise sanitária as perspectivas são absolutamente sombrias. O sonho americano está à beira de um abismo. Aquilo que o cidadão americano concebe como democracia está seriamente ameaçado.

Na eleição passada, Trump obteve sucesso ideologizando a crise, responsabilizando os imigrantes – mexicanos e latinos, principalmente – pela degradação das condições de vida americana, por estarem arruinando o American way of life. Não tendo implementado absolutamente nada consistente que revertesse o processo de deterioração da economia, radicalizou a ideologização da crise e promete radicalizar ainda mais durante a campanha. Insinua ameaças bélicas à China, mantém os ataques aos imigrantes latinos e agora inclui mais um ingrediente, a ameaça interna. Tentará rotular as manifestações antirracistas de ameaças à ordem e à segurança, afirmando que colocam em risco a propriedade privada. Tentará responsabilizar Biden e os democratas por tais manifestações, afirmando que objetivam levar o país ao caos para impor o socialismo e o culturalismo marxista. Este foi o tom da convenção republicana.

Biden, por sua vez, centrará suas críticas ao apoio de Trump aos supremacistas brancos, à sua política xenofóbica, às ameaças de repressão às manifestações e, principalmente, à sua incompetência em reerguer a economia para devolver aos americanos o seu “modo de vida”.

Em síntese, nenhuma das duas candidaturas representa qualquer ameaça ao sistema político americano, ao seu processo eleitoral ou ao modelo de representatividade. A questão democrática em discussão diz respeito à salvação do “modo de vida americano”, da preservação do direito individual à ascensão social baseada na “meritocracia” e do direito individual de consumo e propriedade.

Poderíamos concluir que tudo isto não nos diz respeito, que é problema dos americanos. De fato, seria. Mas isto se não estivéssemos tratando da eleição presidencial na maior potência bélica do mundo, cujo arsenal nuclear é suficiente para extinguir a vida na Terra. A vitória de Trump e a consequente radicalização ideológica da política interna e externa dos Estados Unidos ameaça levar a humanidade a uma catástrofe de proporções inimagináveis. Tudo o que o mundo não precisa, face à gravidade das consequências econômicas e humanitárias da pandemia, são provocações baratas e conflitos desnecessários. Tudo o que o mundo não precisa, é da continuidade do troglodita no comando daquela que ainda é a maior economia do mundo, em que pese seu processo de decadência, e a nação com maior poderio militar. Esta talvez seja a mais importante eleição americana para o mundo.

Neste sentido, ainda que não se possa qualificar Biden sequer como um reformista, sua vitória é de interesse de todos os povos, em especial do brasileiro, cujo presidente se coloca em total e incondicional submissão ao troglodita norte-americano.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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