Usos do erótico na pandemia

Há décadas as feministas afirmam que “o pessoal é político”, e ter clareza de como a vida privada tem sido instrumentalizada para a manutenção de projetos de poder genocidas torna a questão do erótico uma reflexão coletiva inadiável.

Os Amantesl René Magritte

Dada a rotatividade de gestores do Governo Federal, talvez Milton Ribeiro não seja mais o ministro da Educação até a publicação desta coluna, mas pouco importa. A ideia, aqui, é repensar o lugar do erótico a partir de uma fala sua resgatada pela imprensa brasileira.

Em 2018, o advogado e pastor presbiteriano disse em um culto para a comunidade evangélica que as universidades ensinam “prática totalmente sem limites do sexo”. Talvez o jornalismo não precisasse atualizar uma afirmação velha, já que os próprios entes governamentais declaram coisas parecidas todos os dias, mantendo acesa a fogueira contra a agenda identitária que afeta e mobiliza o conservadorismo de parte de seus apoiadores.

Mas, diante do impacto gerado pela máxima estampada nos jornais, pode ser que valha a pena pensar um pouco mais sobre isso que está tão latente em tempos de isolamento social e interações assépticas. Qual o lugar do erotismo na pandemia, essa amálgama de crises – sanitária, econômica, institucional, climática – que no Brasil apresenta atritos tão particulares?

Em primeiro lugar, por que a pauta de costumes tem espaço privilegiado no debate público em um contexto tão dramático? É sintomático que a atual gestão ainda alimente o pânico moral que lhe angariou votos, mas talvez precisemos refazer a pergunta. Por que ainda damos audiência para isso, por que não conseguimos nos orientar para as questões urgentes, e cobrar do Estado a salvaguarda da vida e da dignidade das pessoas diante da ameaça do coronavírus?

Uma segunda pergunta a meu ver importante é o lugar do tabu sexual. Por que seria inapropriado falar de sexo na universidade – pois como o nome já diz, existe para estudar um universo de coisas –, mas estaria liberado se debruçar sobre o assunto nos púlpitos das igrejas e nos palanques políticos? Por que o sexo, uma dimensão da vida privada, protagoniza discursos do atual governo e atravessa quase que a totalidade das pastas ministeriais, sempre como algo a ser freado para livrar a população de um perigo iminente?

Paralelamente a isso temos, no contracampo das decisões governamentais, a condução de uma política econômica também pautada pela contenção: parcimônia de gastos públicos e cortes em áreas consideradas não essenciais, como a saúde e os direitos reprodutivos da mulher; a fruição da cultura; a conservação do meio ambiente para o equilíbrio do clima, do ecossistema e a preservação de modos de vida tradicionais, pautas estranhas à lógica da simples garantia de matéria-prima para a indústria.

Tudo isso lembra Georges Bataille em ‘O erotismo’ quando diz: “A conduta erótica se opõe à habitual assim como o gasto à aquisição. Se nos conduzimos de acordo com a razão, tentamos adquirir bens de toda espécie, trabalhamos em vista de aumentar nossos recursos – ou nossos conhecimentos –, esforçamo-nos por todos os meios para nos enriquecer e possuir cada vez mais. É, em princípio, sobre tais condutas que se funda nossa posição no plano social. Mas, no momento da febre sexual, nos conduzimos de maneira oposta: gastamos nossas forças sem medida e, por vezes, na violência da paixão, dilapidamos sem proveito recursos consideráveis. A volúpia está tão próxima da dilapidação ruinosa que chamamos de “pequena morte” o momento de seu paroxismo. Consequentemente, os aspectos que evocam para nós o excesso erótico representam sempre uma desordem.”

Se Bataille está certo em relacionar a ideia de gozo a uma fantasia de excesso, ao que se gasta e ao que é inútil, talvez revisar onde andamos enfiamos nosso prazer seja revolucionário. Há décadas as feministas afirmam que “o pessoal é político”, e ter clareza de como a vida privada tem sido instrumentalizada para a manutenção de projetos de poder genocidas torna a questão do erótico uma reflexão coletiva inadiável.

Para quem está do lado de cá da trincheira, na oposição ao Governo Bolsonaro, vale também citar a distinção entre erotismo e pornografia feita por Audre Lorde no ensaio ‘Usos do erótico: o erótico como poder’. Para a autora, a pornografia é uma deturpação do erótico ao enfatizar sensações sem sentimento, sendo assim uma forma de alienação.

“O horror maior de qualquer sistema que define o que é bom com relação ao lucro, e não a necessidades humanas, ou que define as necessidades humanas a partir da exclusão dos componentes psíquicos e emocionais dessas necessidades – o horror maior de um sistema como esse é que ele rouba do nosso trabalho o seu valor erótico, o seu poder erótico e o encanto pela vida e pela realização. Um sistema como esse reduz o trabalho a um arremedo de necessidades, um dever pelo qual ganhamos o pão ou o esquecimento de quem somos e daqueles que amamos.”

Se Audre está correta, não há governo mais pornográfico do que o atual, preocupado apenas em nutrir um sistema também pornográfico. Com Bataille de um lado, e Lorde do outro, proponho apenas um complemento ao grito pichado nos muros da metrópole: “façamos mais amor, por favor”.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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