Wikileaks, o governo dos EUA e o cinema “apolítico”

O uso do cinema e outros poderosos meios de comunicação de massas por governos como o dos EUA poucas vezes foi comprovado de maneira direta.

Foi o que ocorreu em 17 de abril, quando o portal Wikileaks divulgou os conteúdos de “e-mails” da Sony Pictures Entertainment. São 30.287 documentos, 173.000 mensagens eletrônicas e 2.200 endereços de “e-mails”. Eles mostram, por exemplo, que o governo dos EUA pediu ajuda para criar uma imagem da Rússia que fosse adequada a seus interesses geopolíticos. E para combater a ameaça representada pelo extremismo do Estado Islâmico.

Esta estreita colaboração envolve o CEO da Sony, Michael Lynton, e o próprio presidente Barack Obama. Uma das mensagens traz o convite para jantar na Casa Branca, com a família Obama. O convite foi enviado por Kristen Jarvis, chefe de gabinete da primeira dama Michelle Obama.

A publicação do Wikileaks revela também cerca de cem endereços de “e-mails” envolvendo pessoas da Sony vinculadas com o governo dos EUA. E também conexões de executivos da Sony com o Partido Democrata – muitos deles participaram de eventos para arrecadação de fundos para o partido.

Em uma das mensagens o subsecretário do Departamento de Estado para Relações Públicas Richard Stengel pede ao diretor da Sony Michael Lynton que mobilize recursos para uma “guerra informativa” contra o Estado Islâmico e a Rússia. “Temos uma montanha de desafios na luta contra a narrativa do EI no Oriente Médio e a narrativa da Rússia na Europa central e no Leste Europeu. Nestes casos há milhões de pessoas nestas regiões que recebem uma versão tendenciosa da realidade”, disse Stengel. “Não é algo que o Departamento de Estado possa tratar por sua conta. Ficaria encantado se convocasse um grupo de executivos midiáticos que possam ajudar a pensar em uma melhor forma de responder a estes dois grandes desafios”, escreveu.

Michael Lynton é também membro do conselho de administração da RAND Corporation, uma organização especializada em pesquisa e desenvolvimento para o setor militar e para a espionagem dos EUA. Num exemplo recente dessa colaboração governo/cinema a RAND assessorou a Sony na produção do filme The Interview., que tenta ridicularizar o governo da Coréia do Norte.

Em sua resposta Richard Stengel, Lynton listou vários nomes da cúpula de Hollywood. Entre eles o presidente da Walt Disney International, Andy Bird; o diretor de operações da 21th Century Fox; e o executivo da Turner Broadcasting, James Murdoch.

Ao referir-se a sua lista de personalidades que tentaria envolver, Lynton deu os nomes de realizadores e também das pessoas que, através de sua atuação no cinema, dariam forma corporal às intenções do Departamento de Estado e seus patrões em Hollywwod. Uma mensagem fala em “superastros para potencialmente ajudarem a amplificar o grande trabalho da Embaixada dos Estados Unidos em Paris”. E é clara a respeito: “Adoraríamos incluir nomes da Sony nos eventos daqui, seja como convidados ou atrações, e adoraríamos ter a oportunidade de usar sua popularidade para promover as prioridades do Presidente e sua agenda fora dos Estados Unidos.”

Entre estes superastros estão George Clooney, Kerry Washington, Julia Louis-Dreyfus, Natalie Portman, e grandes cineastas como David Fincher e Steven Spielberg.

É uma colaboração que o Departamento de Estado parece considerar “normal”. A porta-voz Marie Harf confirmou-a. Mas, disse, ‘são eles que decidem o que vão produzir e qual será o conteúdo”.

Este é o ponto, e é desmentido pelas afirmações anteriores que constam dos “e-mails” divulgados. Em sua mensagem anterior Stengel havia dito: “Esta é uma conversa sobre ideias, conteúdo e produção, sobre possibilidades comerciais”. E assegurou. “Prometo que será interessante, divertido e recompensador.”

Ideias, conteúdo e produção – e possibilidades comerciais: este foi o desmentido antecipado das palavras da porta-voz do Departamento de Estado.

Hollywood entra com diretores e “superastros”. O Pentágono oferece equipamentos como tanques de guerra, aviões, barcos. E também interfere no conteúdo: assessora na elaboração dos roteiros dos filmes. Eles são cuidadosamente lidos e sempre devolvidos com sugestões e correções feitas por especialistas, militares ou não.

As relações entre cinema e governos sempre existiram. Lênin, para quem o cinema era a arte do século XX, defendeu a realização de filmes para difundir a nova forma de organização da sociedade que os bolcheviques começavam a construir na URSS. Foi um pioneiro e suas decisões a respeito foram tomadas às claras, publicadas no jornal soviético Sovietskoye Kino.

O concluio entre o governo dos EUA e os chefões do cinema não tem essa transparência. Afinal, para os manipuladores das classes dominantes é preciso respeitar um mito fundamental: a ideia de que há “liberdade de criação”.

Este mito ajuda a transformar o cinema num eficaz instrumento de manipulação a favor do imperialismo e das classes dominantes contemporâneas.

Segundo esse mito os governos não produzem “filmes educativos”. Os filmes, parte fundamental da indústria do entretenimento contemporânea, tem sua credibilidade assegurada quando são vistos como produções feitas à margem dos governos, por artistas “independentes”.

Ao revelar a mentira desse mito, o Wikileaks ajuda a colocar mais e mais fortes pregos em seu caixão mortuário.

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