A cláusula de barreira joga no lixo os votos dados aos pequenos partidos

A cópia da legislação alemã sobre cláusula de barreira, que consta da lei 9096/95, aprovada durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, é um exemplo da inspiração apressada da experiência de outros países e de sua transposição mecânica para a realidade brasileira.



O pretexto era o de “aprimorar” a lei brasileira, Mas, por ser estranha ao desenvolvimento político nacional, aquela lei trouxe confusão e foi um retrocesso em relação às conquistas democráticas alcançadas em mais de meio século de luta política em nosso país. Ela reintroduziu, por exemplo, o velho problema da representação das minorias, que foi um dos motores dos conflitos políticos desde o Império, levando a sucessivas reformas eleitorais cuja culminação é o sistema eleitoral que, aprimorado desde a legislação de 1932, está consignado na Constituição de 1988, que garante ampla liberdade partidária e a representação proporcional vigente em nosso país.



A necessidade democrática da defesa da representação das minorias foi um dos argumentos que faz parte do “Memorial” e da solicitação de preferência no julgamento da Ação de Inconstitucionalidade (ADIN) entregues, dia 8, ao ministro Marco Aurélio Mello, que é relator da matéria que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1995, e que pede a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira.



Entregue por representantes de quatro partidos – PCdoB, PSOL, PRB e PV – , o “Memorial” argumenta que a lei 9096/95 conflita com a Constituição federal em três pontos principais: a) cria a discriminação entre deputados; b) viola a independência do Congresso ao criar normas para o funcionamento das bancadas parlamentares, que é de competência dos regimentos internos das casas legislativas; c) finalmente, compromete o princípio da proporcionalidade e igualdade de condições entre os partidos.



Como se sabe, a aquela lei draconiana impede o funcionamento parlamentar normal para deputados de partidos que não tiveram 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, sendo 2% deles em 9 estados; além disso, reduz tempo de TV e o acesso aos recursos do Fundo Partidário para essas legendas.



É uma lei que, em “razão da imposição de restrições, que são excessivas, fere os princípios da liberdade partidária, já que vai impedir a organização das minorias em partidos políticos, fazendo com que elas não possam concorrer nas eleições com iguais chances de vitória”, argumentou o jurista Flávio Dino, deputado federal eleito pelo PCdoB do Maranhão. Ela viola o próprio princípio da pluralidade partidária, que pressupõe a proteção da representação das minorias e a igualdade de condições entre os partidos.



Essa quebra de igualdade não atinge apenas os partidos mas também os eleitores que depositaram neles seus sufrágios e que, em conseqüência da perda da função parlamentar dos deputados eleitos por essas legendas, ficam sem representação e seus votos são, literalmente, jogados no lixo.



Nesse sentido, argumenta o “Memorial”, os votos daqueles que elegeram “os Deputados 'zumbis' teriam um valor menor do que os votos daqueles que sufragaram os Deputados eleitos por partidos que alcançaram a cláusula de barreira”, infringindo diretamente exigência constitucional que estabelece o “valor igual para todos” os votos. Distorce o próprio conceito de representação popular, e a soberania popular passaria a se expressar “em níveis diferenciados, uma soberania popular plena e uma soberania popular diminuída”.



O “Memorial” recusa também o argumento de que os pequenos partidos perturbam a governabilidade, um dos pretextos para a adoção daquela lei restritiva. Na verdade, argumenta, a alegada ingovernabilidade reflete a desigualdade social que existe em nosso país. “Olhando para o Brasil e refletindo sobre as características dos nossos processos históricos”, diz, “constatamos que não são os pequenos partidos que dificultam a formação de maiorias parlamentares no Congresso, e sim a inexistência de uma clara hegemonia política em uma sociedade extremamente desigual e complexa”.



Um dos objetivos da lei, não confessado pelos que a adotaram há mais de dez anos, é congelar a situação política que dá para alguns setores da sociedade a hegemonia sobre o Estado, o governo e o sistema político, à margem da manifestação da vontade popular. É fazer com que as eleições deixem de ser ocasiões de disputa política verdadeira entre propostas concorrentes que representam as opiniões e projetos de correntes de pensamento que existem na sociedade, transformando-as apenas em um ritual consagrador da manutenção de um reduzido número de opções já existentes, impedindo a formação, desenvolvimento e consolidação de novas alternativas para o país.


Basta comparar o que aconteceu, nos últimos vinte e cinco anos, com dois dos grandes partidos atuais, o PT e o PFL. Em 1982, o PT não alcançou 5% dos votos para a Câmara dos Deputados; nas últimas eleições, transformou-se numa das maiores bancadas sendo, este ano, a segunda maior. O PFL, ao contrário, em 1982 ainda não existia, sendo parte do PDS, o partido que apoiava os governos militares; ele surgiu em 1985, como uma poderosa dissidência daquela legenda e foi, desde então, um dos principais partidos da Câmara, chegando a eleger, em 1998, 105 deputados. Hoje, em decadência, elegeu apenas 65 parlamentares, tendo mesmo assim a quarta maior bancada. Se houvesse uma cláusula de barreira em vigor neste vinte e cinco anos, certamente o PT não teria crescido e o PFL não enfrentaria as agruras que o atormentam em nossos dias – a lei congelaria uma situação política em que os hegemônicos permanecem e os demais enfrentam dificuldades insuperáveis para crescer.



Quando a lei foi adotada, em 1995, muitos políticos e comentaristas acreditavam que, para fugir às restrições, os deputados eleitos por legendas minoritárias procurariam refúgio nos partidos maiores, e mesmo os partidos pequenos buscariam a fusão ou a incorporação aos que superaram as exigências da lei. A determinação de alguns, entretanto, não atendeu a esses sonhos hemegonistas, demonstrada na resistência do PCdoB, PV, PRB e PSOL pelo direito de existir e ter funcionamento parlamentar normal, como os demais partidos.



Para o PCdoB, por exemplo, não existe a possibilidade de fusão, incorporação ou qualquer outra modalidade de ação que não seja a própria existência do Partido, que já enfrentou, no passado, violências de todo tipo (legais, policiais, repressivas), e superou-as todas.



A resistência contra a desigualdade, lembrou Renato Rabelo, presidente nacional do Partido, “é o tipo de luta que os comunistas gostam”. Em defesa da legalidade de sua legenda, os comunistas não renunciam à sua ideologia, à sua história, ao seu Partido, disse Renato.