A polêmica interessada sobre o livro Por uma vida melhor

O debate em torno dos alegados erros existentes no livro didático Por uma vida melhor envolve questões que vão além do ensino da língua portuguesa.

O alvo do ataque é o fato de que o livro, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) a quase 485 mil alunos em 4.236 escolas, distingue a norma culta e o uso popular da língua portuguesa como instrumentos para o ensino e apropriação, pelos alunos, das formas sancionadas socialmente.

O idioma é uma convenção – esta é a principal indicação dada pelos autores daquele livro, baseados nos ensinamentos de uma ciência, a linguística. Ele evolui movido pelo falar popular que rompe as amarras da gramática e faz acatar como certo aquilo que já foi considerado errado. Seu ensino não pode partir de conceitos absolutos do “certo” ou “errado”, numa realidade naturalmente mutável como é a existência de um idioma, mas do “adequado” ou “inadequado” à norma culta em vigor.

A outra indicação, que certamente está oculta sob a forte rejeição midiática que o livro encontrou, é a denúncia do preconceito linguístico que, ao hipervalorizar as formas de expressão da classe dominante, exclui as formas populares da fala como sinônimos de erro, atraso e ignorância – de subalternidade, enfim.

A discussão envolve, além dos aspectos didáticos e linguísticos, a relação de poder e de dominação que se exprime através da língua e distingue os poderosos dos dominados e também as potências dominantes dos povos subalternos.

Não há dúvida de que a adoção de um idioma como a regra normal (ou “norma culta”) é um fenômeno social e político. A celeuma suscitada pela lei de defesa da língua portuguesa, apresentada à Câmara dos Deputados por Aldo Rebelo (PCdoB-SP), ou a reação negativa causada em 2005 quando o Itamaraty deixou de considerar eliminatória a prova de inglês nos cursos para ingresso à diplomacia, já haviam demonstrado esse caráter político do emprego – e ensino, ou domínio – de um idioma.

Grande parte daqueles que se consideraram contrariados por aquelas iniciativas são os mesmos que, na mídia, vociferam contra o ensino de que a norma culta do idioma é uma convenção que pode mudar, e não uma regra rígida fixada desde a origem dos tempos.

O linguista Marcos Bagno é um dos que denunciam as relações de poder ocultas no uso do idioma. A mídia hegemônica é mestra nisso, mesmo em questões cotidianas. Um exemplo comezinho: ao noticiar as ações do MST sempre se refere a elas como “invasões” e não como “ocupações”, num uso ideológico das palavras recomendado pelos seus manuais de redação e estilo e que se repete em inúmeros outros exemplos. Ao relatar os recentes protestos palestinos no Dia da Catástrofe (o dia 15 de maio), usaram abundantemente a palavra “distúrbios” quando o correto seria “manifestações” ou “protestos”, em outra evidente demonstração do preconceito linguístico que a mídia alega não existir.

Preconceito que muitas vezes a escola reproduz, mesmo que os professores possam não ter consciência disto. Assim, foi no sentido democrático de aprimorar o ensino e combater o preconceito que o MEC, desde 1998 (portanto ainda no período tucano) defende como norma democrática o respeito às variedades linguísticas (regionais e culturais) dos estudantes, cabendo à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona.

Outro extremo deste debate é aquele que, a pretexto de uma radicalidade democrática, recusa o ensino da norma culta como autoritário pois desqualificaria a fala originária, e popular, do estudante. As intenções podem ser boas, mas o efeito não é democrático e reforça o autoritarismo dominante ao excluir o aluno e o cidadão da norma usada pela lei e nas transações correntes, deixando-o à margem de seu entendimento e domínio, como se fosse um estrangeiro em sua própria pátria. O ensino da norma culta da língua é indispensável e é dever do Estado torná-la acessível a toda a sociedade.

O ensino democrático e avançado é aquele cujo objetivo se pauta na libertação e promoção das pessoas. Por isso, o aprendizado da diferença entre as normas culta e popular não pode ser dispensado. A linguagem é comunicação, mas também instrumento de intervenção política, social, cultural, que só se torna possível quando o uso da norma adequada permite a compreensão mais ampla daquilo que se diz e do que é dito por outros. E o ensino tem um papel fundamental para este falar igualitário.

Ao defender o livro Por uma Vida Melhor, o ministro da Educação Fernando Haddad diz que ele “parte da situação da fala, mas induz o jovem a se apropriar da norma culta”. E combateu os críticos que “não leram o livro, fizeram juízo de valor com base em uma frase pinçada do contexto”. Esta é uma “falsa polêmica, ninguém está propondo ensinar o errado”, disse.

Haddad tem razão: é uma falsa polêmica cujos motivos estão além do ensino da língua portuguesa, mas miram a distinção de classe, e de domínio, expressas através da fala.