A tragédia do AI-5 contra a democracia


Ilustração: Cristiano Siqueira

Em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx escreveu: "Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” Seria, segundo ele, um processo “em que a tradição das gerações mortas volta para assombrar a memória dos vivos”.

Um clássico exemplo disso é o retorno do espírito do Ato Institucional número 5 (AI-5), da ditadura militar. O termo circulou pelas bocas de um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro — o deputado federal Eduardo Bolsonaro — e do ministro da Economia, Paulo Guedes, mas a sua essência sempre esteve no ideário bolsonarista.

Quando o presidente menciona o seu ídolo Carlos Alberto Brilhante Ustra, o facínora do DOI-Codi paulista, por exemplo, ele está falando de ninguém menos do que o personagem que materializou aquele espírito. Há, nessas manifestações, o aspecto da truculência, do comportamento troglodita, mas é preciso ligá-lo aos processos sociais e políticos para se compreender a sua verdadeira dimensão.

Os acontecimentos no Equador, no Chile, na Bolívia e na Colômbia são boas referências. Não à toa, Bolsonaro tem se referido aos levantes populares daqueles países como “terrorismo” — termo típico da ditadura militar — e feito ameaças caso o mesmo ocorra no Brasil. Há até uma onda que começa a se levantar, reeditando o fantasma do “comunismo”, como fez o jornal O Globo em editorial dando como verdade a falácia de que “agentes” de Cuba e da Venezuela estavam insuflando as manifestações.

Nessa dimensão, inclui-se o projeto neoliberal, que em sua primeira passagem pela região deixou um rastro de destruição, marcado por índices vergonhosos de injustiças sociais, violência, inépcia estatal e um tenebroso desfile de negociatas com os recursos e patrimônio públicos. Como naqueles tempos, os povos se rebelam contra esses descalabros que vão novamente se formando.

A diferença está exatamente na natureza do governo brasileiro. O país vem sendo uma espécie de campo de experimento da extrema direita. A marcha que levou à vitória do bolsonarismo em 2018 moldou um processo político de natureza autoritária. À frente dele esteve o espectro da Operação Lava Jato, com um aberto projeto de poder, que pavimentou o caminho para o programa de governo ultraliberal e neocolonial capitaneado por Paulo Guedes.

A combinação dessas duas vertentes com o agrupamento político de Bolsonaro resultou nesse governo de sentido autoritário. De certa forma, ele revisita a experiência chilena dos tempos do general Augusto Pinochet, quando as ideias de Milton Friedman, ideólogo da Escola de Chicago e guru de Paulo Guedes, começaram a ser implantadas. Essa teoria, além de fútil, é perversa. Ela só pode durar em regimes de força.

Suas teses são conhecidas pela diferença entre discursos e práticas. Seus defensores, na Grécia Antiga seriam exímios sofistas. No mundo de hoje, podem ser chamados de vigaristas. Sua aplicabilidade implica romper com os ritos democráticos, com os quais elas seriam facilmente demolidas. Daí a primazia da luta em defesa da democracia, a primeira condição para se erguer barreiras contra esse projeto de destruição nacional e de aviltamento dos direitos do povo.