Ajuste fiscal em benefício de quem?
O que pode haver de comum entre as autoridades econômicas do governo brasileiro e agências de administração de fortunas como […]
Publicado 05/01/2011 22:09
O que pode haver de comum entre as autoridades econômicas do governo brasileiro e agências de administração de fortunas como a Merrill Lynch e a Capgemini?
Estas agências calculam que existem, no mundo, cerca de 10 milhões de pessoas com mais de um milhão de dólares livres para investir, e que elas controlam uma riqueza total de 30 trilhões de dólares, que corresponde a 30 vezes o PIB do Brasil. E defendem seus interesses e o crescimento de sua fortuna monumental.
A semelhança inquirida acima está, paradoxalmente, no discurso e na defesa de um ajuste fiscal que, na opinião de muitos, seria necessário para a saúde econômica brasileira. Questão em relação à qual a reação das autoridades econômicas brasileiras tem sido, no mínimo, ambígua.
Em seu relatório publicado no ano passado (World Wealth Report ou, em português, Relatório sobre a Riqueza no Mundo), onde analisou a situação daqueles ricaços em 2009 e sua capacidade de resistir à crise e recuperar os prejuízos que tiveram em 2008, aquelas agências usaram palavras fortes para se referir ao comportamento dos governos ante a crise econômica. Houve uma “farra de gastos governamentais” que levou ao “acentuado aumento da dívida pública nas principais economias”, escreveram. Como a criação e fortalecimento daquele contingente de ricaços é, diz, “impulsionada por uma mistura de fatores econômicos e de mercado”, o relatório afirma que o aumento de sua fortuna depende “fortemente” do sucesso dos governos na gestão da ainda recente recuperação econômica, do controle da expansão econômica em cada país e da adequação aos desafios financeiros mundiais.
O que isso tem a ver com o governo brasileiro? Muito. As pressões pela adoção de um ajuste fiscal já eram fortes no final do governo Lula e cresceram depois da posse de Dilma Rousseff. Miriam Belchior, ministra do Planejamento, quase confirma a possibilidade de cortes quando diz não ter ainda “a menor ideia do tamanho com contingenciamento do Orçamento da União de 2011”, e diz que ainda este mês haverá uma reunião com o ministro Guido Mantega, da Fazenda, para definir o assunto.
As especulações apontam para a possibilidade de um corte correspondente a 1% do PIB (em dinheiro, cerca de trinta bilhões de reais), número que anima investidores estrangeiros, como por exemplo Tony Volpon, chefe de Pesquisas das Américas do Nomura Securities (Nova York), fazendo o crescimento econômico recuar para 4% em 2011 (em 2010 foi próximo de 8%).
O que chama a atenção é o fato de que estas especulações correspondem, quase que letra a letra, às recomendações do relatório Merrill Lynch / Capgemini em defesa de políticas econômicas que favoreçam os super-ricos do mundo.
Apesar de todas as especulações e pressões em favor de um reajuste fiscal que reduza os gastos do governo, a renda dos trabalhadores e o ritmo do crescimento econômico, ninguém pode – em sã consciência – alegar descontrole das contas públicas brasileiras, que fecharam 2010 com um superávit primário estimado entre 2% e 3% do PIB e que, em 2011 poderá ser de 3,1% de toda riqueza produzida no país. Além disso, as reservas externas acumuladas pelo país alcançaram, em 2010, a himalaica quantia de 290 bilhões de dólares (quase 20% do PIB nacional).
O superávit primário é a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele gasta na manutenção da máquina pública e nos investimentos que faz. A diferença (que em 2010 oscilou entre 60 e 30 bilhões de reais) constitui a reserva feita para remunerar os capitalistas que aplicam em títulos do governo em busca de segurança e de altos juros. Daí a ênfase conservadora em sua defesa que, no relatório Merrill Lynch/Capgemini, aparece na forma da defesa de uma adequada gestão financeira dos recursos públicos (adequada significando, aqui, favorável aos interesses dos muito ricos).
No Brasil, o pagamento dos juros supera inclusive o superávit primário, girando em torno dos 5% do PIB, e os recursos para chegar a esse total incluem a economia feita pelo governo através da subtração de recursos da saúde, educação, do funcionalismo, dos investimentos em infraestrutura etc., implicando no corte da renda, emprego, direitos sociais e redução do potencial de crescimento da economia. Mas, como o volume de juros supera essa economia, seu pagamento contribui também para aumentar o endividamento governo que, para satisfazer à sanha dos investidores, acaba transformando em dívida nova aquela parcela de juros que excede a economia feita no ano, expressa pelos valores alcançados no superávit primário.
Este é o ponto. A gestão financeira é uma atividade técnica e, em forte medida, matemática. Mas ela é, antes de tudo, uma atividade política que define quais serão os setores sociais beneficiados pelas decisões oficiais e quais os setores prejudicados. Neste sentido, a defesa de um ajuste fiscal sem a necessária definição de sua natureza permite a suposição que ele seguirá as usuais normas ortodoxas preconizadas por organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial, e defendidas pelos agentes financeiros de todos os quadrantes, que dão a elas o pomposo nome de responsabilidade fiscal pois elas existam justamente para defender seus interesses e a intocabilidade do direito de propriedade. O significado dessas normas é conhecido pelos brasileiros: retração do desenvolvimento, queda no nível do emprego, diminuição da renda dos trabalhadores.
Mas é possível pensar numa outra forma de ajuste dos gastos do governo: aquela que, reduzindo os juros, diminua a parcela da riqueza nacional apropriada por estes privilegiados, com a vantagem de fomentar o crescimento econômico e o bem estar da população. O Brasil tem alcançado sucessivos superávits primários desde a última década e, tudo indica, vai continuar com gastos públicos abaixo da receita, gerando mais e mais reservas para o pagamento de juros. A pergunta que pode ser feita, nesta situação, é: porque não cortar os gastos do governo na conta do pagamento de juros, poupando os investimentos e o fomento ao crescimento econômico? Por que não ajustar o pagamento de juros ao superávit primário disponível, ao contrário do que se faz, que é adequar a economia do governo ao tamanho dos juros pagos?