As digitais de Bolsonaro na marca de cem mil mortos

A passagem dos cem mil mortos pela pandemia da Covid-19 impõe uma profunda reflexão. Antes de mais nada, é preciso reverenciar a memória de todos os que fazem parte dessa marca trágica. Acalentar a dor de seus familiares e amigos, acolhê-la como manifesto de humanismo, de fraternidade, de força na busca de um fim para essa tragédia de múltiplas dimensões.

Tudo isso passa pela constatação, em primeiro lugar, de que essa mortandade precisa ser contida. Os dados indicam que 14% de mortes pela Covid-19 no mundo aconteceram no Brasil, enquanto a população brasileira representa apenas 2,5% da população do planeta. É inadmissível a perda de tantas vidas, decorrente em grande escala de negligências e irresponsabilidades. Assim como é inevitável nominar os que precisam ser responsabilizados por não cumprir suas obrigações. E o mais proeminente deles se chama Jair Messias Bolsonaro.

Como comandante do governo da República, é de sua responsabilidade, acima de tudo, o descaso que levou o país a ostentar essa altíssima taxa de mortalidade. Caberia a ele, antes mesmo da chegada da pandemia, organizar ações para enfrentar o que viria. O Brasil teve tempo suficiente para se preparar, uma vez que antes da propagação do vírus pelo território nacional já havia notícias do seu efeito devastador na Europa e na Ásia.

A chegada da pandemia revelou que o governo estava se encaminhando para um duplo desastre. Enquanto a Covid-19 se espalhava rapidamente, Bolsonaro procedia de forma a facilitar o seu curso. Começou desprezando a gravidade da situação, a ponto de falar em “gripezinha” quando vidas já estavam sendo levadas em grandes proporções pelo mundo afora, e confrontando o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Essas ações iniciais foram uma espécie de ponto de partida de uma escalada de irresponsabilidades que deixaram o caminho livre para a tragédia que agora contabiliza mais de cem mil mortos. Vieram também a campanha sistemática de Bolsonaro contra o isolamento social e a pregação de panaceias, como a sua fixação fanática pela cloroquina, desafiando e confrontando as normas de cientistas de variadas frentes de atuação contra a pandemia.

Bolsonaro seguiu ignorando o Ministério da Saúde, confrontando seu segundo ministro da área, Nelson Teich, a ponto de forçar o seu pedido de demissão, assim como persistiu no incentivo à quebra de regras sanitárias e na prática de prescrever medicamento sem autoridade para fazê-lo. Pôs no pasta da Saúde um mero figurante, o general Eduardo Pazuello, um fantoche manietado pelo presidente, mero seguidor servil de suas diatribes.

O outro desastre de Bolsonaro, também um poderoso viés de propagação do vírus e de mortes, se dá na economia. A entrega do Ministério da área para o chicago-boy Paulo Guedes, figura das entranhas do cassino financeiro, se deu de forma integral, com porteiras fechadas e fronteiras de aço para ele fazer o que bem entendesse. E a única premissa que ele entende é a de não permitir que o Estado socorra as urgências agravadas com a pandemia. Nem mesmo a óbvia necessidade de investimentos na área de saúde, em especial o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Não houve, por parte do governo, nenhuma iniciativa para formular um plano de ação que fizesse frente às demandas que estavam por vir. Quando elas chegaram, a resposta foi o completo descaso. O pouco que saiu dos cofres públicos para atender às emergências do povo foi arrancado a fórceps. Até meados de julho, por exemplo, o governo executou apenas 52% dos recursos destinados ao combate à Covid-19. Precisou uma ampla mobilização para que o Congresso Nacional aprovasse leis que jamais precisariam ser feitas se o país não estivesse sob orientação do bolsonarismo.

Foram os casos do auxílio emergencial aos que ficaram sem fonte de renda, o socorro às empresas mais vulneráveis diante da crise e o auxílio aos estados e municípios. Além de não se adiantar para cumprir seus deveres, Bolsonaro adotou todo tipo de manobras para não aplicar as leis aprovadas na sua integralidade. E seguiu com seu comportamento contrário às normas sanitárias, à responsabilidade do cargo que ocupa e até mesmo ao bom senso.

Esse duplo desastre impõe a urgência de medidas efetivas para, em primeiro lugar, parar esse morticínio. Não se pode ficar indiferente diante de tamanho descalabro, de tanta irresponsabilidade, de uma política já apropriadamente chamada de genocida. A continuidade da perda de vidas nessa escala superlativa e a dor que toma conta das famílias são motivos mais do que suficientes para se combater esse governo. Mas há muito mais: Bolsonaro atenta contra a democracia, ameaça o país com um Estado autoritário e se comporta como inimigo da civilização.