Bolsonaro oficializa jaguncismo no campo

É impossível não constatar uma insânia no gesto do presidente Jair Bolsonaro de sancionar o Projeto de Lei que permite a proprietários de imóveis rurais a posse de armas de fogo em toda extensão da propriedade. Pela nova Lei, prevalece o primado da força sobre o bom senso, a égide da lógica incivilizada do faroeste. Ela desconsidera o histórico brasileiro de violência no campo, produto de uma estrutura social profundamente injusta que tem no monopólio da terra um dos pilares principais.

São famosos os casos de Canudos e Contestado. No período mais recente, existem dois episódios que ilustram à perfeição como esse assunto com cara de século XIX que foi procrastinado ao longo do século XX e que a cada dia gera mais contradições no século XXI é tratado pelos poderosos. O primeiro é o Decreto da Supra (Superintendência da Política Agrária), de João Goulart, que propunha um plano de desapropriação dos latifúndios improdutivos acima de 500 hectares, por interesse social. O então presidente mexeu num vespeiro.

Como a reforma agrária nunca esteve no escopo ideológico dos setores dominantes da velha estrutura oligárquica brasileira, o decreto de Goulart foi um dos estopins do movimento que tomou o poder à força das armas. Logo após o decreto, em 19 de março de 1964 — dia de São José, padroeiro da família —, mulheres ricas paulistas lideraram a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Na verdade, o movimento estava defendendo interesses terrenos de latifundiários, banqueiros e grandes industriais.

Mais tarde, no começo do governo José Sarney, quando se discutia a importância da reforma agrária no processo de redemocratização, o latifúndio se armou e criou, em maio de 1985, a União Democrática Ruralista (UDR). Na Constituinte de 1988, a organização atuou como movimento político mais abrangente, intitulado “Centrão”, para impedir avanços democráticos — entre eles as propostas de reforma agrária, uma reivindicação da qual o capitalismo brasileiro não precisa ter medo, como disse certa vez o vice-presidente da República do primeiro governo Lula, José Alencar.

A nova Lei de Bolsonaro é a retomada dessa política para o campo, agora oficializando o jaguncismo. Ela impõe a máxima de que entre a vida de quem luta por um pedaço de chão e a propriedade de quem concentra a terra, vale mais a segunda opção. É, a rigor, uma opção que vê no trabalhador rural organizado uma anomalia que precisa ser exterminada por foras-da-lei (mesmo que sejam fardados e pagos pelo Estado).

Essa máxima é coisa de gente truculenta, que não respeita o ponto de vista social como a forma correta de encarar conflitos. Ignora a realidade de uma massa que vive no abandono por uma velha estrutura de superexploração, hoje muitas vezes análoga ao escravismo. Prevalecem os ódios de classe. As armas de Bolsonaro alimentam a ideologia dessa gente. Inflam seus bolsos e revigoram seu poder — agravando a situação em que a vítima morre sem motivo e o assassino vive na impunidade.

É o agravamento do cenário de praça de guerra no campo, com balas cortando o ar de um ambiente que deveria ser de diálogo. Está aí o exemplo do relatório da ONG Human Rights Watch (HRW), que acaba de ser divulgado, denunciando a ação de redes criminosas que impulsionam o desmatamento e as queimadas na Amazônia. Retrato de um sistema bandoleiro, que conta com a participação de invasores de terra e fazendeiros, tolerados pela velha tese do latifúndio de que não há mal em fazer da região uma enorme seara para soltar gado e semear lavouras.

A Lei de Bolsonaro, enfim, é mais um artefato do seu governo belicoso contra o povo, do seu projeto de sociedade que inclui a pena de morte, mesmo ela não sendo legalmente permitida. Esse ideal, histórico no Brasil, não quer um projeto social, que além de acumular riquezas distribua renda. Isso mexe com seus valores. Como se vê, mais uma vez impõe-se a urgência de uma ação ampla, que diga, em voz alta e clara, que o Brasil e os brasileiros exigem respeito aos seus direitos.