Cláusula de Barreira: STF derruba aberração jurídica

O Supremo Tribunal Federal extinguiu nesta quinta-feira, 7 dezembro pelo voto unânime dos onze juízes que compõe o plenário da mais alta corte de justiça do país, uma das maiores aberrações jurídicas e políticas dos últimos tempos, que afrontava a Constituição Federal e criava parlamentares e eleitores de duas categorias. A decisão do STF devolve a cláusula de barreira, parte integrante daquilo que os constituintes de 88 denominaram de ''entulho autoritário'', para o lugar de onde nunca devia ter saído: o lixo da história.



 


Sob a égide de seu compromisso constitucionalista, os ministros do STF consideraram e acataram as argumentações apresentadas pelo PCdoB, PV, PSOL, PDT e PRB e, ao julgar a Ação de Inconstitucionalidade (ADIN) contra a cláusula de barreira, consideraram inconstitucionais os artigos daquela lei que impunham aos partidos o alcance dos 5% dos votos nacionais para a Câmara dos Deputados, mais 2% em pelo menos nove estados.



 


Com densa convicção jurídica e política cada um dos onze integrantes do STF demonstraram sob diversos ângulos que a cláusula mutilava a democracia, à medida que ceifava a soberania do voto popular, o pluralismo político e sufocava as minorias. Nas palavras do relator, ministro Marco Aurélio, o objetivo da cláusula era instituir ''a ditadura da maioria.''
 


 


A partir desta decisão, aquilo que a Constituição de 1988 exigia volta a prevalecer, deixando de existir parlamentares ''zumbis'', partidos de segunda categoria e eleitores com seu voto truncado e desrespeitado pela lei. Volta a prevalecer a tradição democrática brasileira, cristalizada em uma legislação eleitoral e partidária própria, não copiada de outras nações, e que decorre das lutas históricas do povo brasileiro por um sistema eleitoral que represente a vontade nacional, refletida na Câmara dos Deputados como a casa onde todas as correntes de opinião organizadas.



 


A aberração jurídica configurada na lei 9096/95 foi introduzida sub-repticiamente logo no primeiro mandato do presidente tucano Fernando Henrique Cardoso, depois de não ter sido sequer votada na reforma constitucional de 1993. Ela representava o principal aspecto de uma reforma política de feição neoliberal e antidemocrática, cujo objetivo era fortalecer aquilo que um dos juízes do STF chamou de ''totalitarismo'' dos partidos grandes, vestindo uma camisa de forças no sistema partidário e criando condições que favoreciam as agremiações hegemônicas, em detrimento das menores, criando obstáculos quase intransponíveis para a competição partidária e eleitoral, consagrando uma situação em que a mudança política e a rotação dos partidos no poder ficava praticamente impossibilitada.



 


O relator da Ação, ministro Marco Aurélio Melo, foi claro, em seu voto, a este respeito, ao alegar que a cláusula de barreira ''penaliza partidos ideológicos e estimula os partidos de aluguel.''  Outros ministros do Supremo fortaleceram esta argumentação ao considerar que, além de ameaçar a liberdade partidária e o pluripartidarismo, aquele dispositivo criava uma ''dualidade imprópria'' na divisão entre parlamentares com pleno direito a funcionamento e outros, não. E reintroduzindo um problema que, no Brasil, parecia superado há décadas, desde pelo menos os anos 30: a questão da defesa das minorias que, desde os tempos do Império, agitou o cenário político brasileiro e foi um dos principais fatores da luta política contra leis eleitorais que favoreciam os partidos grandes e deixavam os demais em situação fragilizada e sem representação. O ministro Marco Aurélio Mello, com razão, fez deste problema – a representação das minorias – um dos eixos de sua argumentação.



 


Situação agravada por aquela lei draconiana ao determinar uma divisão leonina dos recursos do  Fundo Partidário, deixando – disse um dos ministros – ''os partidos à mingua''. O mesmo acontecia, sob aquela lei antidemocrática, em relação à partilha tempo de propaganda gratuita no rádio e na tevê, que dava aos partidos atingidos pela cláusula de barreira o direito a apenas dois minutos de propaganda gratuita por semestres.



 


A declaração da inconstitucionalidade da cláusula de barreira foi talvez a última derrota da direita em 2006. Os conservadores e neoliberais submergiram depois de mais de um ano de campanha golpista contra o governo Lula, foram derrotados na eleição de outubro, viram seus partidos envoltos em graves crises internas, viram a imprensa das grandes empresas que reflete seu ponto de vista conservador derrotada sem conseguir emplacar suas opiniões malsinadas e antidemocráticas. E, agora, são derrotados também naquele quesito que era o eixo fundamental da reforma política antidemocrática que queriam impingir ao país.


 


Na noite do dia 7 de dezembro enquanto as forças democráticas e progressistas comemoravam a sábia decisão do STF, os líderes do conservadorismo, como Tasso Jereissati, presidente do PSDB, e os comentaristas da grande mídia estampavam um semblante de viúvas inconformadas. A grande mídia forjou uma falsa unanimidade em torno da cláusula vendendo-a como um instrumento ''moralizador''. Uma vez mais os ''deformadores de opinião'' sentiram na carne o limite de seus poderes. Primeiro, foi o povo que na campanha eleitoral  caminhou em direção oposta ao que lhe ordenava a grande mídia. Agora, foi o STF que não se curvou à lógica antidemocrática dos sabichões de plantão. 


 


 


Foi uma ''vitória histórica do PCdoB'', comemorou o presidente nacional do partido, Renato Rabelo. Os comunistas enfrentaram aquela lei restritiva desde o primeiro momento, deixando clara sua recusa à lógica dos que a inspiraram e anunciando que o partido não se fundia, não deixava de existir, não traia seu pensamento nem sua história. Este é, como afirmou o ministro Marco Aurélio Mello, o ''histórico e fidedigno Partido Comunista do Brasil'', que não se curvou às exigências absurdas da aberração jurídica que fazia parte da lei 9096/95 e instituía a cláusula de barreira. Um ministro fez questão de elogiar os partidos que apresentaram as ADINs, sublinhando, que tais agremiações ao fazê-lo se recusaram ao esdrúxulo expediente da fusão de legendas heterogêneas. ''Optaram por lutar e preservar sua identidade, seus princípios''.



 


No futuro, quando os historiadores olharem para esta quadra da evolução política de nosso país, não poderão deixar de reconhecer a extensão democrática daquilo que aconteceu na tarde do dia 7 dezembro de 2006, no STF.  Em sua histórica decisão, ele fortaleceu a representação popular e as instituições que a sustentam. Como disse o presidente da Câmara dos Deputados, o comunista Aldo Rebelo, ''a liberdade política é como a liberdade religiosa e a liberdade de imprensa. Quanto mais ampla a liberdade existente no País, mais profunda, duradoura e equilibrada é a democracia''. Este é um marco na evolução democrática, e como tal deve ser comemorado.