Iniciativas em prol da democracia

O processo de construção da democracia é longo, sobretudo num país como o Brasil que padeceu décadas de ditadura. São urgentes, por exemplo, a democratização da mídia e a reforma política, além do passivo social que é enorme. Há, também, tarefas importantes na esfera dos direitos humanos e na recuperação da verdade histórica que não foram realizadas ou ficaram inconclusas.



Três recentes atitudes e iniciativas do governo Lula são positivas no resgate desse débito com o processo democrático.



A primeira. No final de agosto, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República publicou o livro Direito à memória e à verdade. Esta obra é fruto de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Suas 500 páginas relatam 475 casos de brasileiros e brasileiras que foram assassinados pela repressão política no período da ditadura militar. A solenidade de lançamento aconteceu no Palácio do Planalto com a presença do presidente Lula e de dezenas de familiares de mortos e desaparecidos.



Antes, em 95, documentos oficiais já atestavam “mortes não naturais” ocorridas durante o período do arbítrio. Direito à memória e à verdade é uma publicação sob a chancela do governo federal que pela primeira vez reconhece, atesta e documenta as crueldades que o Estado nacional cometeu contra brasileiros no período da ditadura. A perseguição, a tortura, o assassinato de opositores do regime e a  decapitação e ocultação de cadáveres aparecem nas páginas do livro-relato. Crimes, assassinatos, grande parte deles contra opositores que se encontravam presos e sem condições de reagir.


 


Como é dito na apresentação do livro, não se vai “virar a página” desse período trágico da história com “falsos esquecimentos”, mas sim “com uma ampla elucidação de tudo que se passou”.



A segunda. O governo do Pará, através da Secretaria dos Direitos Humanos do Pará convidou a Comissão de Anistia para o I Encontro dos Torturados da Guerrilha do Araguaia. A ocasião serviu para a realização de uma audiência pública da Comissão em São Domingos, município situado na região onde houve a Guerrilha do Araguaia.



O Estado nacional, que no passado massacrara a população e empreendera “uma guerra suja” contra movimento guerrilheiro, dessa feita, voltou à região em missão de paz e ouviu o depoimento de quase 150 pessoas que se apresentaram como vítimas das atrocidades perpetradas pelas Forças Armadas com o fito de receberem reparações econômicas conforme estipula a lei.



É um esforço da Comissão de Anistia de documentar com a voz do povo que foi vítima das atrocidades a verdade histórica e procurar garantir os benefícios da Lei de Anistia a quem que por injunções políticas e outras, como a distância e mesmo a pobreza, não tiveram condições de reclamar seus direitos.



A terceira. O governo decidiu que não vai mais recorrer da decisão judicial que determinou a abertura dos arquivos militares sobre todas as operações na guerrilha do Araguaia. Aguarda-se, agora, a definição da Advocacia Geral da União de como será concretizada a sentença que ordena a União informar o paradeiro dos restos mortais dos familiares dos 22 autores de uma ação que se remonta a 1982.



Na abertura do livro Direito à verdade e à Memória há citação de Antígona, personagem de Sófocles, clássico da tragédia grega, na qual ela se revolta contra uma ordem real que impedia o enterro de determinados soldados que tombaram no campo de batalha. Essa citação retrata uma indignação forte que há na consciência democrática brasileira pelo fato de ter sido negado a dezenas e dezenas de famílias o direito de sepultar seus entes queridos. Espera-se que a decisão correta e importante tomada pelo governo de não recorrer da sentença não resulte apenas em letra morta. Que as instituições republicanas envolvidas no caso, efetivamente, façam esforços necessários para que as famílias dos mortos pela ditadura militar tenham o direito humanitário de enterrá-los em túmulo honroso.



A longa noite ditatorial, entre outros males, provocou abalos na unidade da Nação à medida que o Estado, sob a regência do arbítrio, instaurou uma “caçada” a todos quantos se levantaram em defesa da liberdade.  Sem ódio, sem rancor, mas com a bandeira da paz e da verdade nas mãos, a Secretária Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, a Comissão Especial de Mortos e de Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia têm buscado, além do resgate da verdade e da reparação de danos provocados contra pessoas e famílias, a abertura de caminhos para que a Nação e suas instituições republicanas consigam cicatrizar as feridas provocadas pela violência ditatorial.



A realização de tais tarefas no âmbito dos direitos humanos e do regaste da verdade histórica contribuirão para que jamais o Estado nacional venha novamente impor uma ordem em que brasileiros sejam levados a coagir, a mutilar, a eliminar brasileiros. Na atualidade, os efeitos corrosivos da denominada globalização neoliberal contra a soberania dos países e o direito deles à autodeterminação e ao desenvolvimento mais do que nunca exigem a coesão da Nação, o fortalecimento das instituições republicanas e a unidade do povo.