No STF, o Direito acima de tudo

Quando se fala em Direito, fala-se para quem? Cada um tem tantos direitos segundo o poder que tem, sentenciou o […]

Quando se fala em Direito, fala-se para quem? Cada um tem tantos direitos segundo o poder que tem, sentenciou o filósofo holandês Baruch Spinoza. Desde a Magna Carta assinada por João Sem-Terra, ainda na Idade Média, esse conceito tem estado no âmago das relações econômicas, políticas e sociais.

A democracia como poder do povo, formulada desde a antiguidade clássica grega, implica definir quais instrumentos podem garantir um sistema institucional que assegure a formulação e a aplicação das leis. Esse é o sentido da Justiça num Estado Democrático de Direito, o estabelecimento das regras do Direito com base na ciência e na consciência.

No Brasil, foi preciso percorrer léguas e léguas de uma caminho repleto de obstáculos para se chegar a uma patamar mínimo de garantias legais, um conjunto de leis que tem na Constituição o seu vértice. Como afirma a Ação Direita de Constitucionalidade (ADC) do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), um dos princípios do Direito é a presunção da Inocência.

Sobre ele não se pode tergiversar. A alegação de que a prisão após a condenação em segunda instância serve de atalho ao demorado trâmite dos processos, evitando a impunidade, não resiste sequer à lógica aristotélica. Ora, o bom senso manda que essa deficiência — se é que ela procede — seja enfrentada pelas regras de prescrição, dando celeridade aos processos, não pela burla — ou flexibilização — do Direito.

É falso o argumento de que o reestabelecimento da ordem constitucional significa abrir as portas das cadeias. As armas do Estado Democrático de Direito são os instrumentos mais eficazes no combate a todo tipo de crime, a garantia de que ímpetos e casuísmos não substituam as leis. Ou, dito de outra forma, a garantia de combate à impunidade, seja ela originária de onde for. O crime é enfrentado com rigor e eficiência somente pelos preceitos do Estado Democrático de Direito, um projeto racional, produto da civilização e mecanismo que garante a convivência entre concidadãos.

Fora desse preceito é ceder à tentação à barbárie. A ADC do PCdoB lembra, de forma precisa, que a controvérsia que se estabeleceu no STF sobre esse tema “tem como ponto fundamental a interpretação dos dispositivos constitucionais e legais que dão conteúdo ao princípio da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico”. A ampla defesa, diz, engloba todas as fases processuais. “Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa”, salienta.

Sob as circunstâncias de um verdadeiro rolo compressor de concepções e práticas típicas de Estado de exceção que se estabeleceu com o partidarismo da Operação Lava Jato, o STF, em 2016, alterou sua posição de 2009, de cumprimento do ordenamento constitucional. E agora volta a examiná-la em condições distintas. Cresceu a consciência de que é preciso restaurar o Estado Democrático de Direito.

Para os que se recusam a encarar a controvérsia pelo mérito, a ADC cita o exemplo do Artigo 283 do Código de Processo Penal, que teve a sua redação modificada para adequá-lo ao Artigo 5º, parágrafo 57, da Constituição a fim de garantir o amplo direito de defesa. Essa combinação não admite variações de interpretação. Ela resume um ponto essencial do papel garantidor dos direitos e deveres da sociedade.

Ao se desconsiderar esses princípios, abre-se caminho para práticas fora da lei. A Constituição foi uma conquista inegociável nessa longa caminhada. Qualquer passo atrás significa abrir mão da solidez do Brasil institucional pós-1988, que expurgou do âmago do Estado o entulho autoritário infestado de desmandos acumulado nos anos da ditadura militar.