O significado da visita do papa

O cardeal Joseph Ratzinger já esteve no Brasil por duas vezes (em 1985, logo após ter punido o teólogo Leonardo Boff, e em 1990, para ministrar um curso na tradicional diocese do Rio de Janeiro), mas esta é a primeira visita que faz como papa Bento XVI, Sumo Pontífice da Igreja Católica. Pela generosa e peculiar religiosidade do povo brasileiro, que torna este país a maior nação católica do mundo, a visita tem grande significado e merece todo o respeito – inclusive dos não-católicos. Mas é preciso ir além das aparências para entender as razões de fundo da viagem. Ela não se dá apenas com o objetivo de canonizar Frei Galvão ou para participar da quinta conferência episcopal latino-americana (Celam), em Aparecida (SP).



 Ela tem motivos bem mais complexos e controversos. Além da preocupação com a perda de fiéis no país (segundo pesquisa Datafolha, nos últimos dez anos houve uma redução de 75% para 64% da população católica), a visita tem o claro intento de enquadrar os setores progressistas da igreja brasileira, conhecidos mundialmente por sua “opção pelos pobres” e pela inovadora “teologia da libertação”, o que, de quebra, serviria para moldar toda a igreja “rebelde” no continente. Além disso, como o próprio papa explicitou na sua primeira fala em solo nacional, a viagem visa ditar “normas morais” ao povo e ao governo brasileiros.



Quanto à perda de influência, o Vaticano prega hoje uma igreja mais voltada aos rígidos dogmas católicos e menos envolvida com as questões sociais como forma de conter o “êxodo católico” e o crescimento das igrejas neopentecostais. A própria canonização de frei Galvão, o primeiro santo nascido no Brasil (contra 626 italianos, 576 franceses e 102 alemães), serviria a este propósito. Esta opção também explica o segundo motivo da visita. As posições conservadoras do cardeal alemão são conhecidas. Antes de se tornar papa, como prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, o outrora temido Tribunal da Inquisição, ele liderou a cruzada contra a igreja progressista da América Latina, nascida na conferência de Medelin (Colômbia), em 1968, e reforçada na conferência de Puebla (México), em 1979.



Em setembro de 1984, Ratzinger conduziu o interrogatório que culminou com a condenação do teólogo Leonardo Boff a um ano de “silêncio obsequioso”. Na ocasião, sentado na mesma cadeira em que Galileu Galilei foi punido 400 anos antes, o teólogo brasileiro ouviu do cardeal alemão a seguinte sentença: “Eu conheço o Brasil, aquilo que vocês fazem nas Comunidades Eclesiais de Base não é verdade, o Brasil não tem a pobreza que vocês imaginam, isso é a construção da leitura sociológica, ideológica, que a vertente marxista faz. Vocês estão transformando as CEB em células marxistas”. O hoje Bento XVI continua com a mesma concepção. Tanto que, pouco antes da viagem ao Brasil, ele condenou outro teólogo da libertação, o jesuíta John Sobrino, de El Salvador, como que dando um recado à igreja progressista do continente.



Já no que se refere às “normas morais” que seriam ditadas ao governo, é sabido que o Vaticano propõe “acordos” aos países visitados, que são tecnicamente chamados de “concordatas”. Pela via diplomática, o Itamaraty soube que a “concordata” incluiria o compromisso de tornar obrigatório o ensino religioso nas escolas públicas – o que fere a Constituição, que define o Brasil como um país laico – e a proibição do aborto, das pesquisas com células-troncos provenientes de embriões, da descriminalização das drogas leves, da união civil homossexual, dos métodos contraceptivos, do segundo casamento e da eutanásia.



Ao final da reunião desta quinta-feira com o Sumo Pontífice, o presidente Lula anunciou que “nada” foi assinado e, diplomaticamente, comprometeu-se a realizar em breve uma visita oficial ao Vaticano. O papa foi recebido com toda a pompa e estrutura do Estado, a religiosidade popular teve um momento impar de comoção, mas a soberania do país e as peculiaridades da fé dos brasileiros foram respeitadas.