Os militares e os crimes da ditadura

A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República lança nesta quarta-feira (29) o livro Direito à Memória e à Verdade. Com 500 páginas, relata 339 crimes de morte da ditadura militar (1964-1985), casos de tortura, estupro, degola, ocultação de cadáveres. Pela primeira vez, 12 anos depois da lei 9.140, uma publicação com a chancela do Estado assume a responsabilidade por eles. O  ministro da Defesa, Nelson Jobim, presenciará o lançamento, assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
 


Os militares silenciam. Na mídia, colunistas mencionam reações de “irritação”, pois “a história foi contada apenas por uma das partes envolvidas” – os que resistiam à ditadura. Não esclarecem se as fontes que se irritam em off são da ativa ou da reserva.
 


Os fatos retratados no livro pertencem à história do Brasil. Uma outra geração militar, sem vínculo com os crimes da ditadura, compõe as Forças Armadas da atualidade. Seu pensamento estratégico, suas preocupações e desafios, até sua origem e laços sociais são outros. Tem uma posição patriótica de defesa do Brasil e da Amazônia e não alinhamento com grandes potências. Nâo vêem, e não têm, razões para carregar nas costas os cadáveres de uma ditadura de três ou quatro décadas atrás.
 


Em algum momento, os segmentos mais lúcidos dessa nova geração verde-oliva passarão do silêncio (que já é de alguma forma um avanço) para a proclamação de que nada têm a ver com a ditadura ou seus crimes, como têm demonstrado nos 22 anos pós-ditatoriais. Será uma prova de descortino patriótico. E será um gesto de entendimento com o Brasil.
 


Sim, pois o Brasil e os brasileiros, com as exceções desprezíveis de praxe, já chegaram a um veredito sobre os “anos de chumbo”. Distinguem com nitidez quem foram os heróis e quem os vilões, as vítimas e os carrascos. Neste país – ao contrario, felizmente, do que ocorre por exemplo no Chile, Argentina ou Uruguai – isso é matéria vencida. Do ponto de vista político, a defesa da ditadura está confinada a um representante, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), cuja solidão entre grotesca e ridícula ninguém leva a sério.
 


Os militares que perpetraram os crimes da ditadura, em nome do anticomunismo e da lógica da Guerra Fria, pertencem a um passado que cabe à História julgar. E que a História julgou.
 


Resta ao país a angústia de não saber até hoje onde ocultaram os restos de muitas das suas vítimas, e de não ter acesso à documentação até hoje escamoteada, referente à ação dos órgãos repressivos do regime militar. Aqui, a renitência embora passiva e inconfessa tem se mostrado tenaz – até porque são os homens que atuaram na repressão ditatorial que saberiam dizer onde ocultaram os cadáveres e onde estão os documentos. Mas também ela acabará vencida, ainda que tarde.
 


A cerimônia de quarta-feira no Palácio do Planalto é um passo neste sentido. Os brasileiros do século 21, militares e paisanos, têm mais o que fazer, e não é pouco. Seu interesse pelos anos tenebrosos de 1964-1985 reside em aprender com eles, para que nunca se repitam.