Salvador Allende e o golpismo contemporâneo

Evo Morales e Rafael Correa - Divulgação

Na passagem dos 47 anos do sangrento golpe contra Salvador Allende no Chile, a América Latina passa por mais uma onda de afronta à democracia. Depois da onda de violações da legalidade democrática que surgiu em Honduras e, como um furacão, varreu o Paraguai, o Brasil e Bolívia, além de se manifestar no Equador, surge o processo de manipulação eleitoral com a utilização de métodos arbitrários no Judiciário e do uso de medidas de exceção para interferir diretamente nas eleições presidenciais.

Na Bolívia, o ex-presidente Evo Morales está proibido de concorrer ao Senado nas eleições de 18 de outubro. Em mais uma manobra das elites bolivianas para evitar que o Movimento Ao Socialismo (MAS) retorne ao poder no país, o Tribunal Superior Eleitoral recusou  o pedido do ex-presidente para que sua candidatura fosse liberada. Ele seria candidato pelo estado de Cochabamba. A resolução do Tribunal foi reforçada na Segunda Câmara Constitucional de La Paz com dois votos contra um. Ainda há possibilidade de recurso no Tribunal Constitucional. O argumento utilizado para não permitir a candidatura é que Evo não está no território da Bolívia (ele está na Argentina) e que ele não viveu dois anos seguidos em Cochabamba, por onde pretende concorrer.

No Equador, o ex-presidente Rafael Correa do Equador teve sua candidatura a vice-presidente foi inviabilizada por uma decisão da Justiça do país, que confirmou sua condenação em última instância a oito anos de prisão por crime de suborno. Sua candidatura está em suspenso no Conselho Nacional Eleitoral (CNE) por ele não ter comparecido presencialmente para formalizá-la (semelhante ao que fazem com Evo na Bolívia). Nas palavras de Correa, “finalmente conseguiram. Em tempo recorde, emitem uma sentença ‘definitiva’ para me inabilitar como candidato. Não entendem que a única coisa que fazem é aumentar o apoio popular (…) Lembrem-se: a única coisa a que nos condenam é a vencer”.

São processos viciados e acusações contaminadas por interesses políticos. A ONG Human Rights Watch, por exemplo, acaba de dizer que um dos principais processos contra Morales é movido por questões políticas. São forças que atentam contra a democracia e recorrem a métodos persecutórios para evitar a volta de um caminho de desenvolvimento progressista na região. Sobre a Bolívia, o bilionário empresário norte-americano Elon Musk, fundador da fabricante de carros elétricos Tesla, disse textualmente: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso.”,

Esses fatos não são desligados dos interesses geopolíticos cujo epicentro são os Estados Unidos, com um vasto histórico de cerceamento da autodeterminação dos povos. Na América Latina não foram poucas as vezes em que esses interesses violaram soberanias, destruíram democracias e promoveram violências brutais. Agora mesmo vieram à tona uma série de telegramas divulgados pelo National Security Archives (instituição localizada na Universidade George Washington) dando conta da mão dos Estados Unidos no golpe contra Allende.

São conhecidos, também, os comentários registrados do ex-presidente norte-americano, Richard Nixon, e de seu assessor de Segurança Nacional – e depois secretário de Estado –, Henry Kissinger, sobre o papel de Washington no golpe chileno. Assim como são reveladoras as palavras do embaixador de Washington no Brasil à época do golpe militar, Lincoln Gordon, ao jornal O Estado de S. Paulo, dizendo que que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coréia”.

Um sistema de independência na região significa contrariar esses interesses poderosos e gigantescos. Como analisou o cientista político e historiador Luis Moniz Bandeira, só o Brasil e a Argentina são capazes de formar na América do Sul “um superestado como a União Europeia”. Segundo ele, “a grande influência do Brasil” na origem dos “países da América hispânica” é um processo histórico que “de alguma maneira continua até hoje”.

Pode-se dizer que a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, unindo o Mercosul com a Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), por proposta do Brasil, é um pesadelo para essa geopolítica estadunidense. Os vetos golpistas contra Rafael Correa e Evo Morales são barreiras contra os ecos desse passado que concretizou um ciclo democrático e progressista na região, ao mesmo tempo promissor para o povo e ameaçador para os interesses de Washington.

Há ainda a memória da inserção soberana do Brasil no cenário econômico e político mundial, que no grupo dos países em desenvolvimento, o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), levava o peso da Unasul. Deu-se o mesmo nas memoráveis batalhas na Organização Mundial do Comércio (OMC), com os embates vitoriosos contra a arquitetura de dominação dos países ricos capitalistas do pós-Segunda Guerra Mundial. Essa ofensiva arbitrária na região, que fez o Brasil cair nas mãos do capacho da Casa Branca Jair Bolsonaro, tem tudo a ver com esse histórico.