''Socialismo para os ricos'' nos EUA?

A crise econômica dos EUA, que se espalha pelo mundo rico, é um desses momentos em que máscaras ideológicas são derrubas, expondo sem subterfúgios as ações dos protagonistas na política, na economia ou nos demais setores da vida humana. Nela, os argumentos sobre o estado mínimo, fora da economia regida pela ''mão invisível'' do mercado, o fim da regulação da economia e a defesa da auto-regulação dos próprios agentes econômicos, caem como uma fila de dominós, abandonados justamente por aqueles que, até agora, foram seus maiores defensores. E que, na crise, clamam pela intervenção salvadora do estado.


 


O sistema financeiro dos Estados Unidos ''está derretendo ante nossos olhos''. Esta opinião não é de algum analista de esquerda, ou anti-neoliberal, mas de um dos principais oráculos conservadores, o comentarista Martin Wolf, que escreve no britânico Financial Times.


 


O governo dos EUA e os bancos centrais dos países ricos já empenharam mais de um trilhão de dólares (quase o PIB brasileiro) para salvar as grandes corretoras de investimento. Hoje, sexta feira, a imprensa informa que o governo dos EUA estuda a criação de uma empresa estatal para absorver os títulos podres, criados justamente pelos gigantescos conglomerados financeiros que agora afundam no pântano do cassino global que eles próprios construíram.


 


Muitos analistas acreditam que, daqui para a frente, os bancos de investimento – esta modalidade ''moderna'' do sistema financeiro, que surgiu na esteira da crise da década de 1930 – terão papel menos vistoso. Há mesmo quem pense num retorno a velhas práticas financeiras onde não havia distinção entre bancos de investimento e bancos comerciais. A diferença é que estes recebem depósitos com que se capitalizam. Os bancos de investimento, não – eles trabalham com emissões, títulos, e o dinheiro dos investidores, e captam recursos no mercado (isto é, endividam-se) para ''alavancar'' seus rendimentos e lucros. Os primeiros tem forte regulação estatal; os segundo, não, e agem livremente. E de forma irresponsável, como a crise vai demonstrando.


 


Há sinais fortes de questionamento da financeirização da economia, até agora apontada pela mídia e pelos porta-vozes do grande capital como uma inexorável nova fase da economia. Martin Wolf fez uma sugestão clara, neste sentido. Ele está entre os que defendem um papel mais discreto para os bancos de investimento e a volta da regulamentação. ''A fé indevida em mercados desregulamentados se revelou uma armadilha'', escreveu em um artigo republicado pelo jornal Valor Econômico. ''Uma maior regulamentação é inevitável'', acredita. 


 


Querem a volta de alguma forma de intervenção estatal. Mais forte para alguns, mais atenuada para outros. Esse clamor mereceu um comentário crítico do economista Nouriel Roubini, da Universidade de  Nova York. ''Estão transformando os EUA num país onde há socialismo para os ricos, os bem relacionados e Wall Street, onde os lucros são privatizados e os prejuízos, socializados''. Comentário cujo significado, na verdade, é oposto do que uma leitura superficial pode sugerir. Seu fundamento é um anti-estatismo extremado, típico do pensamento conservador. E esconde a idéia rósea, e falsa, da neutralidade do estado capitalista, pairando acima das classes. Sem perceber uma lição fundamental da crise: o estado capitalista existe para preservar o capitalismo, e sua intervenção na crise tem justamente este sentido. Seu objetivo não é salvar empresas ou capitalistas individuais, mas preservar o sistema capitalista em seu conjunto. Este é o seu papel, que desmente toda a velha parolagem da neutralidade do estado e do afastamento entre política e economia, entre governo e ''mercado''.