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A chama da Liberdade é negra: a memória em disputa

Ainda no início de 2016, o cantor e compositor Aloysio Letra, jovem negro morador de Guaianases, distrito do extremo leste de São Paulo, compôs o samba Rua da Glória: “Estou enterrado na rua da glória / Lembre de mim se passar por aqui / Sou fato oculto da tua história / Mas veja ainda estou aqui”.

Por Abilio Ferreira*

Chaguinhas

Quase três anos depois, em setembro de 2018, no terreno de um prédio demolido entre a Rua Galvão Bueno e o Beco dos Aflitos, próximo à Rua da Glória, no bairro da Liberdade, uma escavação arqueológica localizou os esqueletos de nove indivíduos sepultados no século 18. Ali era o Cemitério dos Aflitos, que funcionou entre 1775 e 1858 (ano da inauguração do Cemitério da Consolação), abrigando os cadáveres de negras, negros e demais pessoas sem cidadania, a maioria executada no Largo da Forca, onde hoje fica a Estação Liberdade (Japão?) do Metrô.

Não foi uma profecia o que Aloysio Letra fez. Músico atento e engajado que é, ele pesquisou com cuidado o assunto de sua criação. “São Paulo meu / este não é mais um outro adeus / Dias e dias se foram, sei / Pauliceia desvairada me acordou / Na voz dos meus / desfilo esse lamento / pranto de outros tempos / quando a corda se rompeu”. Estão aí as referências, as explícitas alusões aos sujeitos negros que produziram e produzem o espaço urbano de São Paulo: o famoso livro de poemas de Mário de Andrade; os desfiles da Escola de Samba Paulistano da Glória, do grande Geraldo Filme; o dramático enforcamento – “a corda se rompeu” três vezes – do cabo Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, condenado à forca por ter liderado, em 1821, às vésperas da proclamação da Independência do Brasil, uma revolta contra a falta de pagamento de soldos aos militares brasileiros.

O achamento das ossadas, portanto, é “apenas” a constatação de que, de fato, a memória negra foi sepultada pelo processo de urbanização das grandes cidades brasileiras e pela imigração europeia e asiática, incentivada pelas elites políticas e econômicas brasileiras para eliminar as chances de recuperação da população recém-saída do regime escravista. Nunca é demais lembrar que, já em 1850 (ano da proibição do tráfico internacional de corpos negros africanos), sabedores de que o fim da escravidão era uma questão de tempo, os escravocratas editaram a Lei de Terras, sob a premissa de que, se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser cativo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha que ser cativa (O Cativeiro da Terra, de José de Souza Martins, 1986).

A polêmica da estação

Em julho do ano passado, a adição da palavra “Japão” ao nome original da estação Liberdade do Metrô provocou polêmica nas redes sociais. Um texto do advogado Renato Igarashi – ele próprio um descendente de imigrantes japoneses –, postado no dia 26 daquele mês em sua página do Facebook, foi curtido e compartilhado milhares de vezes.

Igarashi aborda aspectos que alguns militantes do Movimento Negro, acompanhados por certas pesquisas acadêmicas mais atentas, vêm denunciando há décadas, não apenas em relação ao bairro da Liberdade – mas a diversas outras regiões da cidade e do País. “A Praça da Liberdade (agora Liberdade-Japão)”, escreveu Igarashi, “muito antes da chegada da comunidade japonesa, se chamava Largo da Forca, pois era palco de execução de escravos negros fugitivos e condenados à pena de morte. Foi, aliás, por causa de um negro que a praça e o bairro foram chamados de Liberdade”.

 
 Esse negro a que Igarashi se refere é o já mencionado Chaguinhas, cultuado como um santo popular na Capela dos Aflitos, parte integrante do referido cemitério. O fato de a corda ter arrebentado três vezes levou o povo reunido no Largo da Forca a clamar: “Liberdade! Liberdade! Liberdade!”. Consolidou-se, ao longo do tempo, a tradição de acender velas e fazer pedidos na cela, pegada à Capela, onde Chaguinhas aguardou a execução da pena. A tradição também se manifesta na Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados, situada na Avenida da Liberdade, vizinha do Largo da Forca. 

13 de Maio x 20 de Novembro

A polêmica sobre o nome da estação Liberdade do Metrô é mais importante do que a princípio se possa considerar. Diz respeito à memória como objeto de disputa. É nesse contexto que se trava, desde os anos 70 do século passado, uma intensa batalha simbólica entre o 13 de Maio (dia da abolição jurídica da escravatura, em 1888) e o 20 de Novembro, dia em que Zumbi dos Palmares foi emboscado e morto, em 1695.

É uma batalha desigual, proposta por um coletivo de poetas gaúchos de Porto Alegre – o Grupo Palmares, liderado pelo escritor Oliveira Ferreira Silveira (1941-2009) –, e intensificada em âmbito nacional pelo Movimento Negro Unificado (MNU) a partir de 1978, contra toda a máquina de propaganda da República brasileira, interessada em consolidar o mito, representado pela chamada “lei áurea”, de que o Brasil é um exemplo de convivência democrática entre as raças.

Tanto o coletivo de poetas gaúchos como os integrantes do MNU já tinham consciência, naquele momento, do que mais tarde viria a ser constatado pelas pesquisas acadêmicas: a hegemonia da democracia racial na cultura brasileira atua como elemento desmobilizador das massas (Orfeu e o Poder: O Movimento Negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988), de Michael Hanchard, 2001). Exemplo disso é o fato de que, embora os indicadores sociais, econômicos e sobre a violência explicitem que o racismo é estruturante da desigualdade brasileira, esse assunto ainda aparece como acessório, e não como central, no discurso e nas ações do conjunto da sociedade.

A disputa pela memória, entretanto, é bem mais complexa do que a oposição entre o bem e o mal, ou entre o 20 de novembro e o 13 de maio. Envolve as operações de lembrança e esquecimento, de reconhecimento e apagamento, ainda que involuntário, da própria mobilização negra das diferentes épocas em relação ao patrimônio acumulado pela militância ao longo da história.

Marcha Noturna

Veja-se o exemplo da Marcha Noturna pela Democracia Racial, que desde 1996 – em que pesem suas oscilações entre momentos de maior e menor capacidade de mobilização – faz uma leitura crítica do 13 de maio, realizando um percurso, a partir da Igreja da Boa Morte, por lugares de memória negra da região central de São Paulo. Em 2010, com a Lei Municipal 15.142, a Marcha foi incluída no Calendário Oficial da Cidade. Neste ano, sua 23ª edição disputará espaço na memória da população paulistana com as diversas iniciativas negras que – devido a diversos fatores que não convém aqui detalhar e aprofundar – ignoram completamente seu pioneirismo. É, de fato, uma batalha desigual, em todos os sentidos.

 

Ressalte-se, apesar de tudo isso, que vem crescendo o interesse das novas gerações pelo patrimônio material e imaterial presente na paisagem da cidade. O próprio Aloysio Letra, cujo samba inspira este artigo, representa esse fenômeno: “São chagas no esquecimento / Ferida que teima a sangrar / Ninguém silencia o lamento / A vela não vai se apagar”.

* Abilio Ferreira é jornalista, escritor e militante do movimento negro