Aconteceu uma coisa ruim, por Adriana Negreiros

O meu corpo, invadido com brutalidade pelo estuprador, parecia já não me pertencer

Crédito: Vânia Mignone

Desde que tudo aconteceu, não há um único 24 de maio em que eu não repasse os eventos daquele sábado. Foi em 2003. Naquele dia, eu tinha acordado tarde porque, às sextas-feiras, sempre deixava a redação da revista onde trabalhava perto da meia-noite. Eu vivia em São Paulo havia sete meses. Aterrissara na cidade em plena primavera, no dia 30 de outubro de 2002, uma semana após meu aniversário de 28 anos.

Nasci na capital paulista, mas me mudei para o Nordeste ainda criança, de modo que nunca precisara me preocupar em como me vestir no frio. Para ser totalmente honesta, nem sabia como fazê-lo. À medida que a temperatura caía no Sudeste, mais me convencia de que sandálias, vestidos floridos e camisas com decote em V eram inadequados – talvez ridículos, como alguns olhares na revista pareciam me dizer – à vida nova na metrópole.

Assim, decidi ir ao Shopping Center Eldorado para investir algum dinheiro em blusas de manga comprida, suéteres de lã e jaquetas. Separei dois cds para ouvir no carro, a trilha sonora do filme Durval Discos e o álbum Elis & Tom. Durante os 7 km que separavam meu apartamento no bairro da Pompeia do shopping, em Pinheiros, escutei mais de uma vez minhas músicas preferidas dos dois discos: Mestre Jonas, de Sá, Rodrix & Guarabyra; e Retrato em Branco e Preto, de Tom Jobim e Chico Buarque, na voz de Elis Regina.

O céu ainda estava claro quando parei meu Renault Clio 2000, quatro portas, cinza, no piso térreo do estacionamento, em uma área ao ar livre. Já dentro do shopping, dirigi-me ao caixa eletrônico do Unibanco. Tirei o extrato da conta. Estava duríssima: o saldo era de 150 reais. A situação só não era pior porque, no final do mês, eu receberia o valor das férias. E ainda contava com um bom limite para compras no cartão de crédito.

Ao deixar o shopping, surpreendi-me ao constatar que já anoitecera. Tinha lido em algum lugar que a arquitetura dos shoppings, com sua ausência de luz natural, era pensada para que os clientes perdessem a noção do tempo. Como estava escuro, caminhei rápido por entre as fileiras de carros.

Abri a porta, sentei-me no banco e me preparava para afivelar o cinto de segurança quando alguém entrou pelo lado do passageiro. Antes que eu pudesse gritar, uma mão grossa e pesada tapou minha boca. A outra mão segurava um revólver. Foram um ou dois segundos em que tudo pareceu confuso, borrado, até finalmente ganhar nitidez. “Se não quiser morrer com um tiro na cabeça, faça tudo o que eu mandar. Aqui tem seis balas”, disse o homem, numa fala rápida, nervosa. Então tirou a mão da minha boca, me mandou colocar o cinto e conduzir o carro até a última guarita do estacionamento.

Procurei manter a calma, embora sentisse muito medo. Liguei o motor, tirei o carro da vaga com cuidado e segui as ordens do bandido. Na guarita, girei a manivela para abaixar meu vidro, inseri o ticket de estacionamento e, tão logo a cancela subiu, fechei rapidamente a janela e deixei o shopping no sentido da Marginal Pinheiros.

“É o seguinte, eu quero grana.”

“Na minha carteira tem 150 reais.”

O homem me orientou a seguir reto pela Marginal. Pegou minha bolsa, retirou a carteira com o dinheiro, vasculhou tudo, duvidou quando eu disse não ter um telefone celular. Procurou pelo aparelho no porta-luvas. “Ainda não comprei um, moro há pouco tempo em São Paulo”, tentei explicar.

“Você tem filhos? Quer voltar a ver seus filhos?”

“Não tenho filhos. Fique com o carro, com o cartão de crédito, eu passo a minha senha.”

“Encoste o carro aqui.”

Parei em um trecho da Marginal que nunca saberei precisar. “Troca de lugar comigo. Se tentar qualquer gracinha ou olhar no meu rosto, morre.” Sem sair do veículo, com a arma em punho, ele passou para o lugar do motorista, enquanto eu me arrastava para o banco do passageiro. Vislumbrei seu corpo. Era um homem magro e parecia jovem, eu apostaria que tivesse uns 25 anos. A calça jeans não lhe marcava as formas, devia ter pernas finas.

Ele pegou o caminho da Universidade de São Paulo, no bairro do Butantã, e depois a Rodovia Raposo Tavares, que liga São Paulo ao Paraná. No painel do Clio, uma luzinha amarela indicava que o carro estava na reserva de combustível. O rapaz me avisou que ia parar em um posto de abastecimento. Repassou o combinado: se eu gritasse, corresse, reagisse, olhasse para o lado, seis tiros na cabeça. Fomos atendidos por uma frentista risonha.

Continuei cabisbaixa, as mãos unidas sobre as coxas, os ombros caídos, na esperança de que a moça notasse algo estranho, uma tensão qualquer, chamasse a polícia. A frentista tirou a mangueira da bomba de combustível do tanque do Renault Clio, o sequestrador lhe entregou uma nota de 20 reais. Ela nos desejou boa viagem.

Depois de trafegar por uma linha reta que parecia não ter fim, o sequestrador entrou em um viaduto e pegou uma sucessão de vias secundárias. Olhei para a frente ao perceber a aproximação de um ônibus. “Linha Embu”, informava o letreiro. O homem percebeu o movimento e deu um berro. Nervoso, tirou uma das mãos do volante e apontou o revólver para a minha cabeça. Fechei os olhos.

Permaneci assim até notar uma mudança na maneira como os pneus do carro deslizavam no chão – estávamos em uma estrada de terra, já não era asfalto. Abri os olhos e foi quase como se não o tivesse feito. Apenas os faróis do carro iluminavam uma ruazinha em meio a um matagal. Em dado instante, o homem apagou os faróis. Permaneceu dirigindo às escuras, devagar, com cuidado, mas finalmente calmo, como se conhecesse o caminho tão bem que pudesse fazê-lo, literalmente, de olhos fechados.

Parou o carro. desligou o motor e passou um tempo em silêncio, talvez a se certificar de que não havia ninguém por perto. Abriu a porta do motorista, a luz interna do carro se acendeu e iluminou meu corpo. Eu continuava acuada, com as mãos unidas e próximas ao joelho.

“Tire a roupa.”

Então depositou a arma no console do carro e abaixou as calças. “Você malha?”, ele perguntou, ao passar a mão nas minhas pernas.

“Sim.”

“Agora, vamos trepar gostoso.”

O sequestrador enfiou a mão em um dos bolsos da calça arriada e tirou de lá um preservativo. Disse que não tinha doença nenhuma, que fazia aquilo para não pegar nada de mim. Era uma cena totalmente inusitada, um homem avisando que vai se prevenir antes de estuprar uma mulher. A atitude tão deslocada, entretanto, me encheu de esperança. Imaginei que, se ele estivesse disposto a me assassinar, não faria aquilo – muito embora esse fosse um pensamento ingênuo, pois a intenção certamente era não deixar vestígios de sêmen no meu corpo, vivo ou morto.

O rapaz mandou, mais uma vez, que eu não dirigisse o olhar para o seu rosto. Puxou meu corpo para mais próximo do seu. Exigiu um beijo e usou a língua áspera para abrir minha boca, os dentes dele colidindo contra os meus. Antes de colocar a camisinha, pôs a mão sobre a minha cabeça, empurrou-a para baixo e deu uma ordem que me fez querer vomitar; usou um termo chulo, imprimindo na voz um tom de desejo. Passou-me pela mente a ideia de usar os dentes como alicate. Seria um risco imenso, não levei a empreitada adiante, obedeci de forma mecânica.

Foram momentos nauseantes, mas não fisicamente dolorosos. Dor, mesmo, eu sentiria quando ele se deitasse sobre mim, depois de colocar o preservativo, as mãos com cheiro de látex. Meu corpo estava travado pelo medo, com os músculos contraídos ante o pavor absoluto da violência. Esse corpo, que seria invadido com brutalidade de todas as maneiras possíveis, rasgado e jogado de um lado para o outro, de qualquer jeito, parecia já não me pertencer. Por alguns instantes, confusa – às vezes, nem sabia que parte do meu corpo estava sendo atingida –, esqueci de fechar os olhos. Vi um rapaz de cabelos curtos, crespos e claros, tão empenhado em me violentar que foi incapaz de notar que eu o mirava com as lágrimas escorrendo pelo meu rosto; logo eu, que nunca fui chorona e sempre tive resistência à dor.

Passaram-se longos minutos até, finalmente, o homem ejacular. Acomodou-se no banco do motorista, arrancou o preservativo, vi quando o jogou pela porta. Subiu a calça. “Pode vestir a roupa”, disse. Ligou o motor, afivelou o cinto de segurança, deu marcha a ré e fez uma manobra para pegar o sentido contrário. Em resposta à minha pergunta, disse que estávamos a caminho do Shopping Eldorado.

Permaneci de olhos abertos, apontados para a frente, calada, até que o carro deixou a região do matagal e entrou em uma rua iluminada. Dali a pouco, já seguíamos por uma rodovia e, pelo que sinalizavam as placas, rumo a São Paulo. É estranho pensar que alguém possa se alegrar logo após um estupro, mas foi algo bem próximo disso que senti. Se ele tivesse que me matar e desovar meu corpo, teria feito isso na mata, não voltaria para a cidade. “Vou escapar com vida, vou sobreviver”, pensei.

O sequestrador parecia relaxado. Mantinha o revólver entre as pernas, dirigia mais devagar. Puxou conversa. Quis saber se eu trabalhava, onde eu morava. Respondi de maneira genérica, esforcei-me para ser agradável. Disse ter um emprego em uma editora, viver em um apartamento na Pompeia. “Sozinha?”, indagou. Temi que quisesse ir para a minha casa, menti; disse que era uma espécie de república, dividia o espaço com um grupo de amigos.

“Vou te dar um conselho”, ele disse. “Nunca mais volte ao Shopping Eldorado, porque você está marcada.” Em seguida, narrou sua história. Contou que cursava computação em uma faculdade particular de São Paulo e, até meses atrás, estava empregado na indústria automobilística. Conciliava trabalho e estudo com os campeonatos de caratê dos quais participava – alguns deles internacionais. Após ser demitido, inconformado com a ideia de perder o padrão de vida de classe média, ingressou em uma quadrilha especializada em sequestros-relâmpagos.

Eram cerca de quinze jovens, ele calculou, que atuavam em shoppings da cidade, o Eldorado entre eles. Com os crimes, dizia faturar entre 5 mil e 6 mil reais por mês. Não acreditei em nada, mas fingi que sim; durante suas pausas, eu dizia uma palavra ou outra para demonstrar interesse.

Havia algo de muito esquisito naquela viagem de volta a São Paulo. Ele agia não como um sequestrador e estuprador, mas como um rapaz que acabara de conhecer uma garota e queria impressioná-la. Essa evidência se tornou mais forte quando começou a me explicar como escolhia as vítimas com as quais “trepava”. Disse ter me seguido durante parte do tempo que passei no Eldorado. Que resolveu fazer isso ao me ver andando sozinha, observando as vitrines.

Culpei-me terrivelmente por ter ficado de bobeira no shopping. Talvez, se eu não tivesse demorado tanto, aquela desgraça toda não teria acontecido. Indiferente à minha autoflagelação, ele continuou a se vangloriar, afirmou ser assediado com frequência pelas mulheres, mas “trepar” mesmo, só com algumas escolhidas – as “fáceis” que se jogavam em seus braços, eram dispensadas. Destas, pegava apenas dinheiro. “Você é a minha terceira de hoje”, afirmou. “Mas das outras duas só quis a grana.”

Disse isso como se me fizesse um elogio. Eu não olhava para ele, mas pelo tom de voz dava para notar que sorria. Felicitou-me por eu não ter reagido, do contrário “teria que te matar”, o que faria por necessidade e um pouco a contragosto, não gostava de “apagar mulher”, pois tinha irmã e mãe. Reclamou, porém, do meu desempenho. Ao contrário de outras mulheres que estuprara – ele não usou esse termo, mas a expressão “feito sexo”, como se a violência à qual acabara de me submeter fosse uma transa casual –, eu não demonstrara prazer, parecia fria, distante, “você não sabe mexer”.

Enquanto ele se jactava e me acusava de frigidez, espiei, com o canto do olho, sua mão direita sobre o câmbio. Usava uma argola prateada no dedo anelar. Parecia uma bijuteria barata, dessas compradas de hippies na praia. Concluí que aquilo seria útil se eu precisasse descrever o criminoso à polícia. Foi como se ele pudesse ler meus pensamentos, porque uma de suas últimas ameaças foi de que não o denunciasse. “Não vá na delegacia, fico sabendo e mato você”, disse, ao parar o carro em uma rua próxima ao Shopping Eldorado.

Pegou minhas sacolas no banco de trás, conferiu o conteúdo, não se interessou pela camisa nem pelas jaquetas, me devolveu as compras. Entregou-me uma nota de 20 reais para pagar um táxi, garantiu que no dia seguinte meu carro seria encontrado em um estacionamento privado do bairro de Pinheiros. Disse que o levaria para arrancar o aparelho de som, não tinha interesse em um carro popular, de motor 1.0. Não quis ficar com minha bolsa, ofereceu-me a carteira com os documentos. “Obrigada”, foi minha última palavra, ao descer do veículo.

Observei o Clio se distanciar rapidamente, até entrar em uma rua e sumir do meu campo de visão. Só então corri. Alcancei a Avenida Rebouças e, contrariando as orientações do estuprador, voltei ao Shopping Eldorado, o primeiro lugar aberto que encontrei. Avistei um segurança, perguntei onde podia tomar um táxi. Eu devia estar com uma aparência péssima; ele me indagou se estava tudo bem, se acontecera alguma coisa. “Acabei de ser estuprada”, eu disse, “por um homem que me sequestrou aqui no estacionamento.” O segurança puxou um papel de um dos bolsos da calça, mostrou-me a impressão de uma foto em preto e branco de um rapaz e perguntou se o sujeito era aquele. “Acho que não, não sei”, respondi, “preciso de um táxi.”

Ele recomendou que eu não fosse para casa naquele estado, melhor seria me acalmar um pouco antes de qualquer coisa. Acompanhou-me até o guichê de atendimento ao cliente, contou a história para a funcionária do balcão, ela decidiu me levar ao ambulatório da empresa. Lá, ofereceram-me água, perguntaram para quem poderiam telefonar. Disse que morava sozinha e senti um desamparo que nunca havia sentido ou viria a sentir nos anos seguintes, mas então me lembrei de Fernanda, com quem eu tinha feito amizade havia pouco tempo. Eu tinha telefonado tantas vezes para ela nos últimos dias que sabia o seu número de cor.

Com Fernanda na linha, a moça do shopping me passou o telefone. “Será que você pode vir me buscar aqui no Eldorado? Estou no ambulatório. Fui estuprada.”

Durante os anos 1980, no Brasil, apenas gente muito rica tinha medo de ser sequestrada. Na década de 1990, com o aparato de segurança fortalecido, os milionários se tornaram um alvo excessivamente arriscado para os criminosos. Diante disso, alguns bandidos identificaram outro mercado a ser explorado: a classe média distraída, que andava em veículos sem blindagem ou rastreamento, com seus cartões de crédito a tiracolo. Em 1999, a cada cinco horas um morador de São Paulo era vítima de sequestro-relâmpago. Os bandidos abordavam suas presas na saída do trabalho, no cruzamento de ruas ou na porta do restaurante. Levavam a pessoa ao caixa eletrônico, exigiam que sacasse a maior quantia de dinheiro possível, ou se dirigiam a lojas caras, adquirindo objetos valiosos que eram pagos pelo refém.

Se a vítima fosse mulher, não era incomum que, ao fim do roubo, ainda sofresse violência sexual. Casos assim eram encontrados com frequência nos jornais. Uma mulher estuprada por dois homens no banco de trás de um Fiat Palio, na cidade paulista de Ribeirão Preto, na presença do marido. Outra, em Brasília, violentada diante do esposo, também por dois homens. Uma secretária de 26 anos capturada enquanto passeava no BarraShopping, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e levada para uma casa em São Conrado, na Zona Sul, onde foi estuprada repetidas vezes.

Um fator complicador para as vítimas dessa nova modalidade de crime que prosperava nas grandes cidades brasileiras era o fato de serem cometidos por bandidos amadores. Nervosos e por vezes atrapalhados, podiam partir para a violência por causa do desespero ou pura satisfação. As estatísticas mostravam que os alvos preferenciais dos bandidos eram homens dirigindo carros importados, sem dúvida por serem mais promissores financeiramente. Mas, se calhasse de sequestrarem uma mulher, os criminosos tinham assim uma vantagem adicional: rendida e assustada, ela se tornava presa fácil para um estupro. Ainda que estivesse sem grana, ao menos possuía o próprio corpo para eventual compensação do bandido.

Fernanda tinha uns 30 anos e era minha melhor amiga na cidade. Conheci-a na Editora Abril, ela prestava serviço para diversas redações como jornalista freelancer. Também se mudara havia pouco tempo para São Paulo, vinda de Florianópolis. Logo descobrimos outras afinidades, como o gosto por chope com espuma e lascas finas de presunto cru. Quase todas as noites, depois do trabalho, nos encontrávamos no Filial, um bar da Rua Fidalga, na Vila Madalena, do qual só íamos embora quando os garçons começavam a recolher as cadeiras.

Quando vi Fernanda entrar no ambulatório, quase apaguei. Não fisicamente. Continuei acordada, com os olhos abertos. Mas se, até então, eu estivera totalmente alerta para o que acontecia ao meu redor – a ponto de reter os mínimos detalhes –, ao ver minha amiga foi como se minha mente se desse conta de que poderia trabalhar num ritmo menos intenso, pois haviam chegado reforços, eu agora podia dividir as tarefas. Foi como se meu corpo e minha cabeça estivessem tão cansados que dissessem “chega, agora só pegamos no empurrão”. Mesmo para quem tem dificuldade em pedir ajuda, vergonha de incomodar os outros, há ocasiões em que a autossuficiência não funciona. O momento depois de um estupro é uma dessas ocasiões.

Fernanda assumiu o comando da situação. Conversou com uma funcionária do ambulatório, as duas conseguiram me convencer a prestar queixa na delegacia. Eu resistia a fazer isso por causa das ameaças do bandido, mas também por achar que tinha tido sorte. Tinha sobrevivido, sem ter minhas roupas rasgadas, o rosto esmurrado, hematomas visíveis pelo corpo. “O sequestrador foi bonzinho, usou preservativo” – lembro-me de pronunciar essa frase de maneira pausada, com calma, e do ar de espanto da funcionária do shopping, de seu semblante que me pareceu de descrédito, como se eu fosse uma desmiolada.

Um segurança que se apresentou como policial militar decidiu nos acompanhar até a delegacia, em um veículo do shopping. Fiquei aflita ao me dar conta de que o carro da Fernanda ficaria ali e, na volta, ela teria que pegá-lo no estacionamento. E se ela também fosse sequestrada, se o sujeito já estivesse de volta? A caminho da delegacia, enquanto eu seguia manifestando meu incômodo com aquela situação de perigo iminente, o segurança achou uma boa ideia provar que eu não deveria ter medo, pois estávamos seguros – e me mostrou um revólver. Eu tinha acabado de ser estuprada sob a mira de um, e aquela cena pareceu me jogar para uma realidade paralela em que revólveres brotavam do nada; será que nesse novo mundo eu viveria sendo confrontada com uma arma?

O boletim de ocorrência lavrado no 15º Distrito Policial de São Paulo, no bairro do Itaim Bibi, informou que fui atendida por uma delegada e uma escrivã de polícia. Não guardei nenhuma lembrança do depoimento, do rosto dessas mulheres, tampouco da minha permanência na delegacia. Não sei se demorei para ser atendida, se aguardei sentada em uma cadeira de plástico ou em pé, se tomei café ou água. Sei o que disse à polícia porque está ali, impresso em três páginas, com minha assinatura ao final, à 0h34 do dia 25 de maio, uma assinatura garranchosa, feia, que não serviria para reconhecer firma em cartório, de tão diferente que ficou da original.

“Vítima orientada a comparecer ao Hospital Pérola Byington, junto ao Programa Bem-Me-Quer, sito à Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, próximo ao Teatro Imprensa, a fim de obter assistência psicológica, clínica, bem como para ser submetida a exame clínico sexológico”, registrou o boletim de ocorrência, em sua última folha.

O Bem-Me-Quer era um programa do governo do estado de São Paulo que oferecia atendimento público e gratuito para mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Em 1998, o Ministério da Saúde havia publicado a norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. Com 59 anos de atraso, o país finalmente definira as normas para o exercício do aborto em caso de estupro, direito previsto pelo Código Penal de 1940. Uma das principais recomendações do governo federal era a de que os serviços públicos de saúde fossem ágeis no acolhimento às vítimas.

Antes da criação do Bem-Me-Quer, o Hospital Pérola Byington já ofereceria o acolhimento, mas com um nome menos gracioso: Programa de Atendimento Integral à Mulher Sexualmente Vitimada. Foi no Pérola Byington que, em 1994, uma adolescente de 16 anos fez um aborto depois de ser estuprada por dois homens em um barraco; e, em 1998, uma menina de 9 anos passou por uma cirurgia na vulva após ser atacada por dois vizinhos.

Pérola Byington, a mulher que dá nome ao hospital e cujo nome de batismo é Pearl Ellis McIntyre, era uma paulista de Santa Bárbara d’Oeste, filha de norte-americanos confederados que imigraram para o Brasil durante a Guerra Civil nos Estados Unidos. Foi uma das pioneiras da assistência social no Brasil e, apesar de ter dedicado a vida à defesa dos direitos de mulheres e crianças, sua trajetória é pouco conhecida – são raros os registros a seu respeito em livros, enciclopédias e dicionários de história. Ela nasceu em 3 de dezembro de 1879, concluiu o curso normal e, aos 21 anos, casou-se com o industrial Alberto Jackson Byington, que construiu sua fortuna no Brasil. O casal morou por um tempo nos Estados Unidos, período durante o qual Pérola trabalhou na Cruz Vermelha. De volta ao Brasil, ela ingressou na Cruz Vermelha de São Paulo e, em 1930, junto com a educadora sanitária Maria Antonieta de Castro, fundou a Cruzada Pró-Infância, uma organização social cujo objetivo era combater a mortalidade infantil.

Rica, culta e bem-educada, Pérola Byington conseguiu atrair a atenção da alta sociedade paulistana para a questão da mortalidade infantil, um tema que a sensibilizava em particular. Reunia empresários, jornalistas e políticos em almoços no seu suntuoso endereço – o número 400 da Avenida Paulista – para prestar contas da sua atuação à frente da Cruzada Pró-Infância. Deu visibilidade ao drama das gestantes sem assistência médica e oferecia a elas atendimento pré-natal, bem como acompanhamento pós-parto. Era uma defensora de causas avançadas para a época, como a educação sexual, e fazia questão de contratar mulheres para os cargos mais altos da Cruzada.

Em 1959, o trabalho de Pérola Byington foi intensificado com a inauguração do Hospital Infantil e Maternidade da Cruzada Pró-Infância, que também funcionava como centro de formação para profissionais de saúde – sem perder o foco na criança e, cada vez mais, na mulher. Dedicou-se a essas causas até sua morte, em 1963, depois de fraturar a bacia em uma queda no Barclay Hotel, em Nova York, onde estava a passeio. Um mês depois, o nome do hospital foi mudado para Pérola Byington.

No hospital, enquanto eu esperava o atendimento, Fernanda tentou me distrair. Pediu para ver o que havia nas sacolas de compras, elogiou minhas escolhas, embora tivéssemos gostos diferentes e eu soubesse que ela dizia aquilo para me agradar. O espaço onde estávamos era iluminado por luzes fortes, que espalhavam um tom amarelado em tudo, não parecia um hospital. Sentadas perto de nós, havia uma mãe com a filha de 5 anos, a menininha tinha sido estuprada e segurava um bicho de pelúcia. Brincava fazendo movimentos lentos, estava machucada.

Fui a um telefone público e disquei para o celular do meu marido, a cobrar. Já corria a madrugada, mas ele atendeu a ligação, a voz sonolenta. Naquele final de semana, viajara com o governador, a trabalho, para a cidade de Ipu, no interior do Ceará. “Aconteceu uma coisa ruim”, eu disse. Não entrei em detalhes, mas contei que tinha sido estuprada e estava em um hospital para fazer os tais exames de corpo de delito. Mais tarde eu saberia que, após desligar o telefone, ele deixou o quarto do hotel onde estava hospedado, bateu na porta do chefe de gabinete do governador, pediu demissão do cargo de porta-voz e seguiu para o aeroporto, em Fortaleza, distante mais de 250 km de onde estava.

O médico que me atendeu era um homem bonito, de voz suave e olhar algo piedoso. Lembro-me de ter ficado incomodada com esse olhar, um pouco desconfiada. Meu caso não era nada, lá fora tinha uma criança com a roupa suja de sangue. Eu era uma mulher de 28 anos, conhecia o sexo, entendia o que tinha acontecido. Aquela criança devia estar totalmente confusa.

Por causa do preservativo, o médico não identificou vestígios de sêmen no meu corpo. Mas apontou “três rágadas de aspecto recente e sangrantes, localizadas em quadrantes posteriores de borda anal”. Depois de tomar vacina contra hepatite B e uma série de medicamentos, deixei o hospital com um saquinho cheio de potes de comprimidos, o coquetel antiaids. Alertaram-me para os efeitos colaterais dos remédios: náuseas, vômitos, falta de apetite, erupções na pele. Perguntei se aquilo era mesmo necessário, já que o criminoso usara camisinha. Garantiram-me que, sim, eu tinha chances de ter contraído o vírus HIV e até de engravidar. Mas a pílula do dia seguinte, que eu acabara de ingerir, iria me prevenir desse último drama. E, mesmo que o remédio não fizesse efeito, a lei me autorizava a fazer um aborto.


Trecho adaptado do livro A Vida Nunca Mais Será a Mesma, a ser lançado em outubro pela Objetiva.

Texto publicado originalmente na Revista Piauí

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