Ana Bueno: Ser Tão Música

Evocação ao sertão de Guimarães Rosa se funde às “imagens” despertadas pela música de Vivaldi e Bach

A literatura só “descobriu” de fato o sertão nordestino quando Euclides da Cunha lançou o primeiro livro-reportagem brasileiro, Os Sertões, em 1902. Correspondente do jornal O Estado de S. Paulo nas trincheiras da Guerra de Canudos, Euclides afiançou que “Canudos não se rendeu”.

Numa saudação efusiva dos combatentes, ele escreveu que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” – uma espécie de “Hércules-Quasímodo”. Também dedicou uma das três partes do livro à terra, ao terreno, ao palco de tal acontecimento histórico. Para o escritor, a guerra tinha transformado aquele pedaço do sertão numa “Troia de taipa”, seja pelo heroísmo, seja pela fragilidade.

Além de mostrar com dignidade o lado do oprimido, Euclides da Cunha desmanchou o conteúdo ufanista e irrealista da carta de Pero Vaz de Caminha, escrita quatro séculos antes e considerada a certidão de nascimento do Brasil. Caminha apresentava uma terra com “muita quantidade de ervas compridas”, marcada por um “grande monte, mui alto e redondo”, além de “serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos”. Concluiu que, nesta terra, “em se plantando, tudo dá”.

Nada mais distante de uma região como a sertaneja – que, apenas no Nordeste, se estende por oito estados. João Guimarães Rosa, um mineiro de Cordisburgo, mostrou que o sertão – na verdade, o “grande sertão” – também tinha presença e vida em outras regiões, como o Centro-Oeste e Minas Gerais. A tal ponto que o Rio São Francisco, num trecho pelo interior de Minas, emerge “tão grande” que “parece um pau grosso, em pé, enorme…”.

Na literatura roseana, o sertão se torna a paisagem literária brasileira por excelência. A força mística do São Francisco parece suplantar a hostilidade do clima semiárido e os limites de uma vegetação que transita da caatinga ao deserto. Guimarães Rosa, tal qual Euclides da Cunha, comprovou a vocação inspiradora do sertão brasileiro.

Vocação que, ao encontrar o talento e a sensibilidade de Ana Bueno, a Aninha tão querida e linda, geógrafa, jornalista e poeta, ganha uma de suas traduções mais belas. No poema Ser Tão Música, a evocação ao sertão de Guimarães Rosa se funde às “imagens” despertadas pela música de Vivaldi e Bach. A descrição é viva, minuciosa, repleta de lirismo. Numa poesia de imagens e sons, cheia de metáforas e alusões, temos mais uma ressignificação do universo sertanejo.

Pela lente prodigiosa de Ana Bueno, esse sertão tem uma complexidade e um encanto à altura dos melhores sertões literários que nossos escritores já registraram.

SER TÃO MÚSICA
(Por Ana Bueno)

À Adriana Holtz

É sertão de Rosa
É o cacto alimento
É flor de mandacaru e palma
No sertão acalento da fome
No lumaréu do Sol é prazenteira.

Ser tão música
É celeste céu do Planalto
Vista infinita da Chapada
Emoção do Vale da Lua
Som das águas corredeiras
Vereda beleza em árida terra.

Como um mito amazônico,
não se vê, mas se crê e sente.
É canto dos pássaros Vivaldi,
na primavera e no verão.
Também é dor da árvore no chão,
da vida indígena em passamento.
Necessária como o mate do quíchua

Suspende o ar na paisagem profunda
de abrupta ruptura em queda
nos cânions dos Pampas,
surpreende em sentimento
como uma aurora ou poente.

Ou na alegria pantaneira,
de terras alagadas,
de costume tropeiro e charque,
transcorre em notas e línguas
como na confluência
hispânico-lusitana.

Nos mares de morros acidentados
a metrópole assinalada,
no desmate da Atlântica Mata,
desponta como um raio de luz
entre os prédios comprimidos.
Desacelera o sentir da cidade
que não se quer ser trenzinho caipira.

Sob o verde da cidade é bálsamo
no sábado límpido céu de isolamento,
os fractais de Bach,
si bemol-lá-dó-si,
no cello polifônico
crescente de emoção
traz vida alumiando
dias contados de oclusão.

(SP, julho de 2020)

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