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Antônio Carlos Affonso dos Santos: O fecha corpo

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Durante a semana santa do ano de 2008, estive passando uns dias à guisa de descanso, visto não ter férias há  mais de dez anos, em Monte Alegre do Sul, interior de São Paulo. Vencer o estresse; esta era a razão para estar em Monte Alegre do Sul, uma charmosa Estância Balneária, engastada entre as montanhas. Montanhas estas cobertas de verde, onde ainda nos dias atuais habitam macacos, siriemas, tucanos e tatus. Tendo limítrofes os municípios de Amparo e Serra Negra. A cidade de Monte Alegre do Sul é a menor entre as vizinhas com exceção, talvez, de Pinhalzinho; para nós que trabalhamos como “terceirizados” (sem contrato empregatício), qualquer final de semana num hotel charmoso numa cidadezinha ainda mais charmosa, vale como férias e ajuda a diminuir as tensões à que estamos sendo submetidos, nestes tempos de globalização.


 



Na manhã de 21/03/2008, sexta-feira Santa, a cidade de Monte Alegre do Sul recebeu um grande número de turistas, dentre os quais eu e a Dirce, minha esposa, para participar da tradição cinqüentenária do “Fecha Corpo”, que acontece na casa da família Valente, defronte à praça central. Lá, as pessoas recebem gratuitamente uma dose do “remédio espiritual”, como é chamada por alguns, para “fechar o corpo” contra mau olhado, inveja e outras doenças do espírito. Havia uma fila de cinquenta pessoas, logo às nove da manhã. Embora não acreditasse, voltei naquele mesmo dia, por volta do meio-dia e conferi a crença de quê aquela dose de cachaça, curtida com guiné, arruda e mel acompanhada de um naco de pão com sardela, pudesse atrair tanta gente. Neste horário, meio-dia, cumpria-se aquele mesmo ritual, só que agora se misturavam na Praça Principal, defronte a igreja Matriz, uma multidão: católicos e umbandistas, evangélicos e espiritualistas. O religioso e o profano, numa mistura de crenças, esperanças, curiosidades e deslumbramentos. A cidade fervilhava de gente ao meio dia. Suas pequenas e centenárias ruas, já não comportavam tantos carros. Já havia um enorme congestionamento na cidade e os carros formavam uma espécie de comboio gigante, que não permitia mover-se. Tudo parado, tudo travado; e a fila para receberem o “fecha-corpo” nunca diminuía, ao contrário, espichava-se. Os carros, em meio ao congestionamento, andavam no máximo com a incrível velocidade de cem metros cada meia hora; os carros dos turistas da capital e outras metrópoles interioranas, como Campinas, Ribeirão Preto, Araçatuba e São José do Rio Preto, além daqueles das cidades mais próximas, como Amparo, Serra Negra, Pinhalzinho, Jundiaí, Jarinu, Bragança Paulista, Atibaia, Itatiba, Morungaba e etc; estacionavam na entrada da cidade e transmitia a todos nós aquela sensação de festa, coisa tão gostosa de ver e sentir, cujos valores vamos perdendo à medida que nos acostumamos a viver em uma grande cidade.


 



O “Fecha Corpo”, é costumeiramente realizado entre as 6:00 h e às 12:00 h, embora tal horário não seja muito rígido. A origem deste evento teve início quando amigos e conhecidos do Sr. Zezé Valente, ficaram sabendo da promessa feita pelo Sr. Zezé a uma ex-escrava (Nhá Sabá), por ter se curado de uma enfermidade, que nem os Médicos da época conseguiram. Consta-se que o Sr. Zezé Valente estava à beira da morte. Definhava-se, dia a dia. A família à época tinha alguns amigos ex-escravos que viviam com eles. Dentre eles, a Nhá Sabá, que quando ainda criança foi beneficiada pela Lei Áurea, que libertou os escravos em 1888. Corria um ano da década de 1950. A Nhá Sabá, então com mais de oitenta anos, cansada de ver médico visitando a família e a cura nunca que se concretizava, resolveu falar com o enfermo Sr. Zezé. Disse-lhe se ele quisesse, ela poderia curá-lo. Nada pediu em troca do favor. Ele  concordou e então ela passou a viver ao lado dele, rezando por ele e servindo-lhe o “fecha-corpo”, acompanhado de um naco de pão e peixe. Aos poucos o Sr. Zezé, foi melhorando até que se curou de vez. Após a cura, pela Nhá Sabá, ele fez promessa de distribuir o “fecha-corpo” enquanto vivesse assim o fez. Até hoje, muitas pessoas ainda seguem a tradição e participam todo ano, tomando, em jejum, a cachaça com guiné, arruda e mel, acompanhado por um pedaço de pão e peixe, da família Valente. Segundo me foi passado oralmente, os descendentes do Sr. Zezé ainda vivem naquela casa da Praça da Matriz. Durante muitos anos eles, para cumprirem a promessa feita pelo patriarca, tinham que desfazer-se de bens, comprando tudo aos pouquinhos, com parcos recursos. Se algum dia houve alguma reação do representante do clero na cidade, eu não sei; porém sei que talvez até pela índole dos brasileiros e nossos colonizadores, muitos fiéis saíam da igreja depois de participar da procissão ou da cerimônia do lava-pés e, ato contínuo, atravessava a praça e vão direto para a fila defronte à casa da família Valente. Não são raros aqueles que levam a bebericagem para casa, reservando-a como panacéia para pessoas doentes da família ou amigos que porventura estivessem necessitadas de conforto material e espiritual. Nos dias atuais, a maioria dos hotéis da cidade de Monte Alegre do Sul, consegue litros e mais litros do “fecha-corpo” para servir aos hóspedes e turistas, sem que tenham que andar a pé por bom tempo e ficar na fila esperando por horas até.Alegre do Sul,


 


 


Já há alguns anos, a família Valente tem “patrocinadores”: padarias, peixarias, alambiques, sitiantes, fazendeiros e a Prefeitura Municipal de Monte todos se esforçam para que a tradição não pare. No mês que vem, é a Semana Santa. Lá em Monte Alegre do Sul, certamente haverá uma fila de pessoas aguardando o momento de receber o “fecha-corpo”. Se eu não puder ir este ano, vou no próximo. Bem que estou precisando do fecha-corpo para proteger-me.


 


-Saravá!