Colheita do tempo] O apurado de janeiro

A cada tempo que passa, ando colhendo palavras: as mais doces, maturadas ou cheias de frescor; aquelas que floresceram ou frutificaram. É parte do meu ofício, semear e colher. O mês de janeiro rendeu uma boa safra.

Foto: Ana Mary C. Cavalcante

Acontece um tempo de se prestar mais atenção à vida. Talvez seja quando não temos mais o tempo de antes, para gastá-la, mas ainda continuamos tendo a chance de tê-la – e cada chance é o necessário para perceber a vida. Depois que passei dos 30 anos (e já faz algum tempo!), que é mais ou menos a metade do caminho até a média da estimativa de vida local, eu me dou conta mais das perdas do que dos ganhos: “caiu a ficha” de que não realizei os grandes sonhos que esbocei na infância e na adolescência. Desde ser bailarina (e escritora, e astronauta) até ter uma casa na praia e os fins de semana de mar e paz, passando por uma família estruturada, o amor de cada dia e filhos bem criados.

Por já ter cruzado tanto tempo, sem ter tirado todo o proveito (faltou coragem mais cedo, é fato), agora, enquanto me aproximo da finitude (é inevitável a tudo o que nasce), ando inventariando o viver: garimpo manhãs, tardes e noites; encontro importância nas miudezas; abrigo palavras e imagens do caminho; salvo aquilo que eu considero belo. Parte desse inventário é, absolutamente, privada, intransferível, porque é o que compõe minhas crenças, minha integridade; outra parte, eu compartilho no Instagram @anadossuspiros.

Neste post, para emendar fevereiro e também um passo noutro, indo adiante – mas sem perder a paisagem de vista (ou da vida), eu reúno alguns pensamentos e olhares soltos pelo tempo. Aqueles que eu quis guardar, feito presente de aniversário.

(1)

eu desejo o belo de cada dia do novo, que sempre nos inicia.
o belo de plantar, de cuidar, de colher. de abraçar, de silenciar e de dizer.
eu desejo a permanência e o amor, mas, se necessário for, também a despedida.
uma morada, nova acolhida.
eu desejo a coragem e toda paisagem que houver nessa vida.

paz e bem a cada leitora e leitor do Blog Ana dos Suspiros.

abraços daqui,

(2)

convivo com a depressão, perto e longe; no cotidiano e nas reportagens; em família, entre amigos e nos mais diversos olhares que cruzam os encontros da minha #vidadejornalista. não é a mudança de calendário, um ano para o outro, que cura. é preciso mesmo virar uma página da vida: muitas vezes, uma infância inteira, uma adolescência mal resolvida, uma velhice inevitável, um casamento frágil, uma carreira equivocada, enfim, cada um sabe a dor de ser o que é. e virar essa página da vida requer um tempo que não pode ser marcado em nenhum calendário: “segunda-feira, eu fico bem”, “dia 15, eu penso positivo”, “em março, eu sou outra pessoa”… não é possível assim. mas há outras possibilidades de cura(s), a qualquer tempo , eu acho. e eu acho que a maior delas é a própria vida que oferece: a possibilidade do encontro – consigo (o que é surpreendente), com o próximo (o que lhe amplia), com o mundo (o que lhe torna mais forte). particularmente, desejo todos os encontros possíveis. e uso a palavra para guardar cada um deles em mim. vamos seguir juntxs em 2020?

(3)

arrumar a casa é feito arrumar a vida,
cuidar do jardim é feito cuidar da alma.
nem sei por onde começar:
a casa está uma bagunça.
há poeira por todo o passado;
é preciso varrer as memórias;
tirar o mofo dos sonhos;
encontrar lugar no presente para o futuro que vai chegar (e ele sempre vem sem aviso).
o jardim quase foi esquecido.
é urgente cortar o emaranhado de pensamentos que sufocam os caminhos,
e colher todos os planos, antes que apodreçam,
e aprender com os bougainvilles a ultrapassar muros e cercas. eu acho.

(4)

entre um problema e outro para resolver (#bora zerar a agenda do passado?), eu tenho prestado mais atenção na vida. na maneira que ela encontra de manter-se viva: com seus nascimentos. meu atual trabalho, no bairro do Benfica (uma área universitária e plural, de casas emoldurando praças, de cortejos santos e profanos, de ainda se andar a pé), há caminhos de árvores. ontem, eu cruzei com essa gigante da foto. não sei bem por qual motivo essa árvore me lembrou uma amiga-irmã que o universo me deu. não sei se pela grandeza dessa pessoa, que consegue abarcar os outros; não sei se pela gentileza de ofertar o melhor de si mesma (como as árvores fornecem sombra, frutos, ninhos…); ou se pela luz que ela reflete. o que eu sei, a cada tempo, é que um mundo sem amigos é como um quintal sem árvores. eu acho.

(5)

hoje, 18/1, completo um mês de efetivo exercício (como se diz no serviço público) em meu novo trabalho. deixei a redação do jornal impresso, em setembro de 2019, e agora aprendo tudo de novo na redação do radiojornalismo. sou, outra vez, meus 17, 18 anos, quando comecei a descobrir a escrever o mundo e os outros. sou minha própria chance, sempre. sigo um dia de cada vez, tentando chegar nos acertos. no rádio, é outro texto, é outra forma de contar histórias e de medir a extensão delas (passei do número de caracteres para a quantidade de minutos; e todo segundo importa), são outras pessoas que podem se tornar grandes amigxs nesta #vidadejornalista… e é também, mais do que nunca, ouvir a própria voz (já que eu preciso narrar a notícia – rs). têm sido dias de abraçar e agradecer; do tempo desanuviar, e a luz transpassar as brechas, clarear o que preciso (re)ver. tem sido, particularmente, bonito porque todo aprendizado é assim. afirmo porque já sei: podemos ser nosso próprio belo .

(6)

quando tatuei a palavra “fé” no corpo, as minhas crenças fundamentais estavam à deriva. amor e o próprio Deus, ensinamentos desde a infância, tinham desaparecido no horizonte da vida. é assim, acontecem tempos de naufrágio. e eu precisei sentir o chão outra vez, ainda que não soubesse bem qual seria o caminho a caminhar. então, escolhi a fé – sim, somos, principalmente, escolhas. uma fé desenhada do mar onde naufraguei; feita da mesma matéria-prima – as águas de navegação e de mergulho – e com uma força semelhante. caminho sobre a fé (pergunta tão grande quanto Deus) enquanto aprendo a realizar meu próprio resgate.

(7) (poeminha do caminho)

(8) o(a) mar

e eu quase me esquecia
daquilo que me fazia
sorrir tudo outra vez.

(9) (crônica quase poema)
não me casei aos vinte e poucos anos, nem tive filhos quando era para tê-los.
confundo véu e grinalda.
não, não me casaria mais.
ainda criaria pássaros, mas deixaria as gaiolas abertas.
e seria mulher mil vezes. desse jeito e de outros, indefinidamente.
minha vida foi o descompasso,
o desfazer,
o desajuste.

meu feminino é feminista.
tantas vezes eu disse sim, até gritar o não.
sou eu quem pago minhas contas, lavo minhas roupas,
sou eu quem piso o chão.

sou eu quem me salvo.

não faço mais planos, quero fazer bordados.
imagino ir à lua,
ando de bicicleta.
rezo.
danço e canto ao mesmo tempo.
prefiro ir a pé se vão de carro.
prefiro o mundo ao lar,
o carnaval ao recato,
não depilar,
embriagar,
inebriar-me.

prefiro o azul.

deixo os cabelos brancos e deixo bilhetes em cima da mesa.
não tenho paciência pra zap e muito menos tenho certeza.

só mantenho firme o despropósito de escrever as mal traçadas linhas, as linhas tortas.

não sou Deus, 
mas
sou deusa.

faço poemas sem versos,
viagens sem mapas,
tomo café sem açúcar, bebo o amargo.
mas não dispenso os afetos.

não arrumei a casa, apenas a mala está pronta.
um dia me disseram que eu devia me casar,
e ter um filho, um parto normal, depois outro,
e aprender a cozinhar,
e emagrecer,
e pintar o cabelo,
e aguentar,

que a dor é pra doer.
eu digo que é pra curar.

e me disseram que ser feliz era pecado.
e me disseram até a maneira de amar, que eu tivesse cuidado,
pensasse muito bem para não me apaixonar.
mas vejam que contradição,
se a loucura faz parte,
se amor é o descuido da razão.

me disseram o que fazer, mas eu me esqueci e faço sem manual de instrução,
erro
acerto
me arrependo
perdoou(-me)
aprendo.
ai, meu coração.

me disseram que eu devia escrever um livro, plantar uma árvore, ter juízo.

ainda imagino ir à lua.
ainda quero criar pássaros sem gaiolas. (de tanto eu querer) um dia me disseram que eu era o ponto fora da curva. eu digo ao que me disseram: eu sou a curva.

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