Como a resistência negra inspirou dois dos maiores sambas de enredo

Segundo Luiz Antonio Simas, sambas-enredo “podem ser material pedagógico, para que a gente conheça a história do Brasil”

Em 1960, Salgueiro desfilou no Carnaval com o samba-enredo "Quilombo dos Palmares"

A história do guerreiro moçambicano Yasuke, primeiro samurai negro da história do Japão, levou a Mocidade Alegre ao título do carnaval 2023 em São Paulo. A escola da zona norte paulistana usou o tema para encorajar a população negra nos dias atuais. “Pode ter fé / Que todo preto pode ser o que quiser”, diz a letra do samba-enredo.

Não é a primeira vez que a saga de um personagem ou mesmo do povo negro inspira carnavalescos e faz história. Segundo o maior especialista no assunto, Luiz Antonio Simas, a resistência dos negros à escravidão no Brasil inspirou de dois dos melhores sambas de enredo de todos os tempos.

Simas acaba de lançar uma edição revista e ampliada de Samba de Enredo – História e Arte, escrito em parceria com Alberto Mussa. Na missão de atualizar o livro, eles sistematizaram nada menos que 1.600 sambas já cantados nos carnavais do Rio de Janeiro, de 1870 até a atualidade.

É uma monumental obra de referência, a exemplo do Dicionário de História Social do Samba, que Simas fez em co-autoria com outro gigante, Nei Lopes. Pelo Dicionário, aliás, eles foram agraciados com um Prêmio Jabuti.

Historiador e compositor, Simas articula como poucos a cultura afro-brasileira, as religiões de matriz africana – ele é babalaô no culto de Ifá –, o universo negro do Rio de Janeiro e, claro, o samba. Mas sua expertise parece ainda maior quando se trata dos sambas-enredo, uma das mais belas contribuições da “civilização carioca” ao mundo. A isso se soma a visão progressista e original que o historiador confere a seus objetos de estudo.

Em entrevista à Veja, o historiador foi questionado sobre “os sambas mais importantes da história”, se é que é possível comparar criações feitas em contextos tão distintos. Mas Simas não pestaneja e cita dois sambas que, a seu ver, “podem ser material pedagógico, para que a gente conheça a história do Brasil”. São composições que evocam a luta dos escravos pela emancipação.

É da Acadêmicos do Salgueiro o primeiro desses sambas, composto há 63 anos por Anescar Rodrigues e Noel Rosa de Oliveira. “Em 1960, o Salgueiro desfilou com Quilombo dos Palmares, quando Palmares nem era citado na maioria dos livros didáticos brasileiros”, lembra Simas. “Quilombo dos Palmares chega à Avenida antes de chegar às escolas. Teve muita gente que teve o primeiro contato com a história de Zumbi através do samba do Salgueiro de 1960”.

Quilombo dos Palmares
(Salgueiro, 1960)

No tempo em que o Brasil ainda era
Um simples país colonial,
Pernambuco foi palco da história
Que apresentamos neste carnaval.

Com a invasão dos holandeses
Os escravos fugiram da opressão
E do julgo dos portugueses.


Esses revoltosos
Ansiosos pela liberdade
Nos arraiais dos Palmares
Buscavam a tranquilidade.

Ô-ô-ô-ô-ô-ô
Ô-ô, ô-ô, ô-ô.

Surgiu nessa história um protetor.
Zumbi, o divino imperador,
Resistiu com seus guerreiros em sua tróia,
Muitos anos, ao furor dos opressores,
Ao qual os negros refugiados
Rendiam respeito e louvor.
Quarenta e oito anos depois

De luta e glória,
Terminou o conflito dos Palmares,
E lá no alto da serra,
Contemplando a sua terra,
Viu em chamas a sua troia,
E num lance impressionante
Zumbi no seu orgulho se precipitou
Lá do alto da Serra do Gigante.

Meu maracatu
É da coroa imperial.
É de Pernambuco,
Ele é da casa real.

O outro samba-enredo citado por Simas é mais recente, foi obra da Estação Primeira de Mangueira e evoca a luta que culminou na Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Como nota o historiador, a escola aproveitou com brilhantismo uma efeméride – o centenário da Abolição da Escravatura.

“Em 1988, a Mangueira faz 100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?, que é uma profunda reflexão sobre a maneira como a abolição aconteceu”, analisa Simas. Os autores são Alvinho, Helio Turco e Jurandir.

100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?
(Mangueira, 1988)

Será que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será, oh, será
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão

Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu

Moço
Não se esqueça que o negro também construiu
As riquezas do nosso Brasil

Pergunte ao Criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela

Sonhei
Sonhei que Zumbi dos Palmares voltou
A tristeza do negro acabou
Foi uma nova redenção

Senhor! Ai, Senhor!
Eis a luta do bem contra o mal (contra o mal)
Que tanto sangue derramou
Contra o preconceito racial

O negro samba
O negro joga a capoeira
Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira

Para Simas, os sambas-enredo com denúncia e reflexão continuam a ter vez no Carnaval. “Nós vivemos períodos de muita intolerância e de preconceito”, diz ele, lembrando os ataques do bolsonarismo ao Nordeste. “O Brasil, ao mesmo tempo que é um país de uma cultura muito bonita, é extremamente preconceituoso. E nós vimos preconceito contra o Nordeste sendo destilado pelas redes sociais no último processo eleitoral.”

O ponto negativo, porém, é que, na visão do historiador, o Carnaval está cada vez mais descolado do povo brasileiro. “As próprias escolas de samba, em um certo momento, perderam conexão com as comunidades, sobretudo na década de 1990 e início dos anos 2000. As escolas começaram a fazer enredos patrocinados – muitas marcas, empresas, cidades patrocinavam as escolas.”

Simas também critica a chamada “elitização dos desfiles”. De acordo com o especialista, o Carnaval hoje é marcado por “ingressos muito caros e dificuldades de acesso do povo”, tornando-se “um espetáculo que priorizou o turista e se esqueceu do carioca”. Não por acaso, surgem cada vez menos sambas-enredo e desfiles que parecem fadados à posteridade.

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