Filme de Eliane Caffé atualiza crônica genial de Adoniran Barbosa, ao narrar mundo das ocupações de edifícios em SP e o cosmopolitismo plebeu de seus protagonistas.
Por José Geraldo Couto
Publicado 31/03/2017 17:32 | Editado 13/12/2019 03:29
Boa parte da história social e arquitetônica de São Paulo está sintetizada na canção “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa: “palacete assobradado” da burguesia agro-industrial paulista vira cortiço, que é derrubado para a construção de um “edifício alto”, e os moradores da maloca vão viver ao relento, “pegando as palhas nas gramas do jardim”. Hoje seria necessário um adendo: o “edifício alto” foi abandonado, está caindo aos pedaços, e uma multidão de desabrigados o invade para construir ali seu lar, contra as pressões da Justiça e da polícia.
Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, é, de certa forma, esse adendo que faltava ao clássico de Adoniran. Poucos filmes podem ser considerados mais atuais. O que vemos ali é a crônica, entre a ficção e o documentário, do dia a dia de uma “ocupação” no centro de São Paulo, às vésperas da sua “reintegração de posse”, eufemismo para despejo.
A narrativa é episódica, alternando histórias de vários moradores e misturando atores a personagens “reais”, isto é, que vivem seus próprios papéis. Essa opção pela fragmentação propicia a Eliane Caffé a liberdade de trabalhar com os mais variados materiais, formatos e texturas.
Forma heterogênea
Há home movies dos próprios moradores, conversas por Skype de refugiados do Congo e imigrantes da Palestina, flashes de coberturas jornalísticas (cedidos pela Mídia Ninja e pelos Jornalistas Livres, entre outros), além evidentemente das ações encenadas e filmadas pela própria diretora. Sem contar que os ocupantes resolvem fazer um “audiovisual” artístico, misturando teatro, dança e música, e um blog para divulgar e discutir seu movimento.
Em alguns momentos – como na ocupação de outro prédio com a ajuda dos moradores do Cambridge – é impossível distinguir onde termina o registro documental e começa a ficção. O fato de os personagens comunicarem-se continuamente com suas localidades de origem via internet permite que o mundo todo se infiltre naquele espaço confinado. Por meio desse artifício, vemos um pouco de tudo, de minas de coltan na África a cidades bombardeadas na Síria. Esse caráter híbrido e heterogêneo confere uma notável vitalidade ao filme, mas também certa frouxidão e falta de rigor a algumas passagens.
Há tramas secundárias que parecem enxertadas artificialmente no conjunto com o objetivo de forçar uma identificação do espectador com os personagens: por exemplo, as cenas de amor entre uma moça brasileira e um refugiado congolês, ou o assédio de um jovem palestino por uma velha maluca (a excelente Suely Franco). Os diálogos, sobretudo os dos imigrantes com seus familiares distantes, tendem a ser didáticos, explicando uma situação geopolítica e induzindo a uma tomada de posição. O fato de o partido assumido ser o “correto” (contra a opressão e a intolerância, a favor da liberdade e da fraternidade) não o isenta de ser uma espécie de muleta dramática.
No mais, a mise-en-scène é bastante eficaz, explorando, muitas vezes com a câmera na mão e enquadramentos em que a imagem está parcialmente obstruída, a sensação de exigüidade do espaço, de claustrofobia e ao mesmo tempo de aconchego, troca, calor humano. Corredores parcialmente iluminados e fossos de escada são imagens recorrentes. O plano da espiral da escada filmada em contre-plongée enquanto todos descem batendo panelas é uma lindeza. A luz é tão essencial para o filme como para os moradores. Não por acaso, uma das primeiras imagens é a de fiação improvisada e uma das primeiras cenas é a do conserto da instalação elétrica do prédio.
Teatro social
Na ponte entre a ficção e o “real” ocupa um lugar decisivo o extraordinário José Dumont, ator capaz de transmitir como poucos a veracidade de uma experiência humana, qualquer que seja o seu papel. Aqui ele é uma espécie de intelectual orgânico dos moradores, a todo momento conectando seu cotidiano prosaico com a dimensão da filosofia, do sonho e da poesia.
O outro alicerce dramático do filme é a surpreendente Carmen Silva, líder dos movimentos de ocupação e uma atriz nata. A certa altura, os moradores ensaiam sua participação numa audiência no fórum sobre a ação de despejo que pesa sobre eles. Carmen assume o papel da juíza que os receberá. O humor incisivo, a consciência aguda de cada detalhe do teatro social, da liturgia da dominação, faz desse breve momento uma cena de antologia. Só ela já valeria o filme.
Cabe ainda uma palavra sobre o final literalmente explosivo. Não é um final feliz ou catártico. A bem dizer, não é nem sequer um final. É como se o espectador do cinema pressentisse que a rua lá fora o espera com a continuação dessa história.
Assista ao trailer: