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Frei Caneca: nenhum carrasco topou enforcá-lo

Na vida civil ele foi Joaquim da Silva Rabelo; como sacerdote, foi Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, mas acabou incorporado ao panteão dos heróis brasileiros como Frei Caneca.

Por João Cabral de Mello Neto

Estudo para Frei Caneca, de Antônio Parreiras - Wikicommons

Frei Caneca rejeitou o mando de Pedro I, e não aceitava nenhum rei que não estivesse regidos por uma Constituição.

Lutou contra o absolutismo nas revoluções de 1817 e de1824 (a Confederação do Equador), irradiadas de Pernambuco para as províncias do Nordeste e do Norte.

Preso e condenado a morte, foi executado no dia 13 de janeiro de 1825 – tinha 46 anos de idade.

Na hora da execução, o carrasco oficial não aceitou enforca-lo, e as autoridades, que procuraram um substituto nos presídios, não encontraram ninguém que topasse enforcar o frade, que acabou sendo fuzilado.

Prosa Poesia e Arte traz, em homenagem à sua memória, o trecho do Auto do Frade, de João Cabral de Mello Neto, que descreve essa busca inútil por um carrasco.

A gente no Largo:

Falaram a dois substitutos
Ambos à morte condenados.
Ofereceram-lhes igual prêmio:
ir seus caminhos liberados.
Nenhum não quis. Do mesmo jeito
ambos os dois foram espancados.
A réus sem morte ofereceram
mesmo prêmio que aos dois carrascos.

A gente no Largo:

Por falta de quem contracene
abandonarão todo espetáculo.
E terminarão confiando
o enforcamento a um voluntário.
Consultaram todo o escalão
do sistema penitenciário.
Mas ninguém quis. Certo tiveram
a visita da Dama de pardo.

A gente do Largo:

Um emissário foi mandado
recrutar gente na cadeia.
Foi fazer a todos os presos
oferta melhor que as já feitas.
Por piores que sejam os crimes
sairão soltos e a vida feita.
Com bom emprego na cadeia,
farda, comida, cama e mesa.
(…)

A gente no Largo:

Assim, cá estamos à espera
de um tipo ideal de carrasco.
Que não tenha fé numa Dama
que voa vestida de pardo.
Que tenha um crime para ser
de alguma forma premiado
para quem a forca compense
carência que o deixe saciado.

A gente no largo:

Uma forca sempre precisa
de um enforcado e de um carrasco.
A forca não vive em monólogos.
Dialética, prefere o diálogo.
Se um dos dois personagens falta,
não pode fazer seu trabalho.
O peso do morto é o motor
porém o carrasco é o operário.

A gente no largo:

Dizem por aí que o emissário
voltou com as mãos vazias.
Ninguém aceitou o perdão
porque é à custa da vida.
Sair das grades está bem
de ser carrasco não se hesita.
O grave é depois fazer face
ao que a Dama de pardo exija.

O soldado:

Vi na cadeia muitos réus
Que esperam tranquilos a pena.
Disse tudo o que me mandaram
Mas foi inútil toda a lenha.
Nem mesmo o monstruoso assassino
Que trucidou na Madalena
Pai, mãe, filho mais quatro escravos
E um bebe de dias apenas
Que por isso foi condenado
Pegando a última sentença,
Concorda em enforcar o padre,
Dia que é questão de consciência.
Parece que o melhor carrasco
É um menino em toda inocência
Ir buscar no Asilo da Roda
Carrasco infantil, mas com venda.

Oficial:

Seja o que for, vou eu agora
Até a Comissão Militar
Pedir que forme um pelotão
Que venha para o fuzilar.
Uma saída que vejo,
Embora seja irregular:
É pedir o ascenso do crime
A um digno crime militar.

Trecho extraído do Auto do Frade, de João Cabral de Mello Neto. Publicado no livro João Cabral de Mello Neto. Obra completa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.