João Cabral, a poesia que serve à verdade

Poeta com dicção sertaneja do Nordeste, João Cabral de Melo Neto não veio do sertão. Veio do Recife e da infância vivida na Zona da Mata

“Tanto o poeta quanto o prosador são responsáveis diante da humanidade pelo que eles dizem. Portanto, um sujeito que nasceu com aptidão para usar as palavras, a primeira obrigação dele é dizer a verdade.”

Retirada de uma entrevista, a fala acima de João Cabral de Melo Neto se inscreve como um testemunho da vida e poesia que ele concretizou, disse, falou e escreveu para sempre. A obra que dirigiu para o coração do Brasil, do Nordeste, de Pernambuco, do mundo, é a melhor prova. A frase citada está neste vídeo:

São muitas ideias que se cruzam e não sei por onde começar. Enquanto melhor ordem não vem, digo que João Cabral é um poeta com dicção sertaneja do Nordeste, dicção clássica – e, no entanto, ele não veio do sertão. João Cabral veio do Recife e da infância vivida na Zona da Mata, em terras de engenho que depois virou propriedade da Usina Tiúma. Então como se fez dessa maneira?

Em mais de uma entrevista, ele já declarou que recebeu uma lição estética da literatura de cordel. Menino de engenho, ou no engenho, ele mandava comprar os folhetos. Quando chegavam, lia os livrinhos primeiro em silêncio e depois para os trabalhadores, todos analfabetos, em voz alta. A experiência repetida está no seu poema Descoberta da Literatura:

No dia a dia do engenho,

toda a semana, durante,

cochichavam-me em segredo:

saiu um novo romance.

E da feira do domingo

me traziam conspirantes

para que os lesse e explicasse

um romance de barbante.

Sentados na roda morta

de um carro de boi, sem jante,

ouviam o folheto guenzo ,

a seu leitor semelhante,

com as peripécias de espanto

preditas pelos feirantes.

Embora as coisas contadas

e todo o mirabolante,

em nada ou pouco variassem

nos crimes, no amor, nos lances,

e soassem como sabidas

de outros folhetos migrantes,

a tensão era tão densa,

subia tão alarmante,

que o leitor que lia aquilo

como puro alto-falante,

e, sem querer, imantara

todos ali, circunstantes,

receava que confundissem

o de perto com o distante,

o ali com o espaço mágico,

seu franzino com o gigante,

e que o acabassem tomando

pelo autor imaginante…

Cabe agora fazer uma distinção – mostrar uma diferença específica – entre a poesia de João Cabral e a de outro gigante, Manuel Bandeira. Eu quero e devo dizer: o Recife de Manuel Bandeira é o Recife da sua infância, o mundo perdido de um recifense que partiu da cidade e guardou dela o seu tempo fundamental.

Cartão postal do Recife, com destaque para o Rio Capibaribe e a Ponte Maurício de Nassau

Evocação do Recife

Recife

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais

Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois

— Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura

Recife sem mais nada

Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado

e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas

Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê

na ponta do nariz

Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras

mexericos namoros risadas

A gente brincava no meio da rua

Os meninos gritavam:

Coelho sai!

Não sai!

*

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa

Craveiro dá-me um botão

*

(Dessas rosas muita rosa

Terá morrido em botão…)

De repente

nos longos da noite

um sino

Uma pessoa grande dizia:

Fogo em Santo Antônio!

Outra contrariava: São José!

Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.

Os homens punham o chapéu saíam fumando

E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

*

Rua da União…

Como eram lindos os montes das ruas da minha infância

Rua do Sol

(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)

Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…

…onde se ia fumar escondido

Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…

…onde se ia pescar escondido

Capiberibe

— Capiberibe

Lá longe o sertãozinho de Caxangá

Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu

E nos pegões da ponte do trem de ferro

os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

*

Novenas

Cavalhadas

E eu me deitei no colo da menina e ela começou

a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe

— Capiberibe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas

Com o xale vistoso de pano da Costa

E o vendedor de roletes de cana

O de amendoim

que se chamava midubim e não era torrado era cozido

Me lembro de todos os pregões:

Ovos frescos e baratos

Dez ovos por uma pataca

Foi há muito tempo…

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada

A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem

Terras que não sabia onde ficavam

Recife…

Rua da União…

A casa de meu avô…

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife…

Meu avô morto.

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro

como a casa de meu avô.

Diante de tal beleza, dói no coração falar de uma diferença específica da Evocação do Recife para outro imenso poema. Me consola dizer que não se trata de mostrar um nível de superioridade de um poeta sobre outro. Aqui, ressalta-se uma séria diferença. Quero e devo dizer: o Recife de João Cabral é o Recife da adolescência, da juventude, de um homem de esquerda que não foi Manuel Bandeira. Ou de um Bandeira que jamais poderia ser, devo com o coração magoado falar.

Os poetas João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Lêdo Ivo

E de mágoa em mágoa, o bom carrasco fere: João Cabral de Melo Neto é o grande poeta que reflete sobre a paisagem física do Recife, para o Recife, onde todos os acidentes geográficos encarnam os marginalizados de uma sociedade de classes, bárbara, quase feudal, quase de castas. E nessa reflexão de gênio raro, ele se torna o poeta de mais alto nível de consciência política, social, que não se encontra em nenhum outro poeta brasileiro, no particular de uma cidade que é denúncia em seu rio.

Onde outros veem o belo rio Capibaribe, João Cabral vê um rio cujas águas são sobreviventes degradados, que até ali nenhum poeta enxergou na paisagem que corre. O rio, para outros, era composição da beleza da cidade. Mas para João Cabral o Capibaribe é um cachorro que atravessa o Recife:

A cidade é passada pelo rio

como uma rua

é passada por um cachorro;

uma fruta

por uma espada.

*

O rio ora lembrava

a língua mansa de um cão

ora o ventre triste de um cão,

ora o outro rio

de aquoso pano sujo

dos olhos de um cão.

*

Aquele rio

era como um cão sem plumas…

*

O rio sabia

daqueles homens sem plumas.

Sabia

de suas barbas expostas,

de seu doloroso cabelo

de camarão e estopa….

*

Na paisagem do rio

difícil é saber

onde começa o rio;

onde a lama

começa o rio;

onde a terra

começa da lama;

onde o homem,

onde a pele

começa da lama;

onde começa o homem

naquele homem.

*

Difícil é saber

se aquele homem

já não está

mais aquém do homem;

mais aquém do homem

ao menos capaz de roer

os ossos do ofício;

capaz de sangrar

na praça;

capaz de gritar

se a moenda lhe mastiga o braço;

capaz

de ter a vida mastigada

e não apenas

dissolvida

(naquela água macia

que amolece seus ossos

como amoleceu as pedras)…

*

Aquele rio

é espesso

como o real mais espesso.

Espesso

por sua paisagem espessa,

onde a fome

estende seus batalhões de secretas

e íntimas formigas

Estátua de João Cabral no Recife, às margens do Rio Capibaribe

Que grande poema! Creio, creio não, tenho certeza que João Cabral é um poeta de nível tão alto que assusta. Na obra de reconhecimento mundial, Morte e Vida Severina, que ele escreveu aos 34 anos, existem versos que alcançam o sublime, mas um sublime à maneira de João Cabral, pois abala com pancadas fortes qualquer sensibilidade adormecida:

— Seu José, mestre carpina,

e em que nos faz diferença

se acabamos naufragados

num braço do mar miséria?

*

— Severino, retirante,

muita diferença faz

entre lutar com as mãos

e abandoná-las para trás….

*

— Seu José, mestre carpina,

que lhe pergunte permita:

há muito no lamaçal

apodrece a sua vida?

e a vida que tem vivido

foi sempre comprada à vista?

*

— Severino, retirante,

sou de Nazaré da Mata,

mas tanto lá como aqui

jamais me fiaram nada:

a vida de cada dia

cada dia hei de comprá-la

E canta e explica a beleza da criança que em mais profunda miséria nasce:.

— E belo porque com o novo

todo o velho contagia.

— Belo porque corrompe

com sangue novo a anemia.

— Infecciona a miséria

com vida nova e sadia.

— Com oásis, o deserto,

com ventos, a calmaria

Até atingir esse cume, esse píncaro mais alto de uma poesia em qualquer lugar do universo:

— Severino retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga;

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida Severina.

A vontade que dá é de dizer mais nada. Tudo mais será bobagem, enfeite de papel vulgar. Mas uma vez que não posso falar mais nada, recolhido à minha insignificância deixo o poeta em um momento flagrado por outro, Alberto da Cunha Melo. Na mesa do bar, em Olinda, Alberto me contou uma vez que foi receber João Cabral no aeroporto do Recife, levado por um amigo comum, Francisco Bandeira de Melo. E o que aconteceu? João Cabral desceu do avião e depois, enquanto olhava os montes à distância, parecia transtornado. Alberto me contou que João Cabral se apoiou em uma coluna externa do aeroporto e se pôs a delirar. Quer dizer, embriagado de poesia o poeta máximo passou a falar de cor versos que escrevera para o martírio do Frei Caneca:

… como será o Recife

que será? Não há quem diga.

Terá ainda urupemas,

xexéus, galos-de-campina?

Terá estas mesmas ruas?

Para sempre elas estão fixas?

Alberto me contou e ficamos em silêncio na mesa. Não tínhamos palavras. Fenômenos assim a gente vê, ouve, escuta e guarda, para algum dia, quem sabe, lembrar. O quanto era diferente esse pernambucano que tantas vezes foi decantado como um homem frio, racional, naquele dia no aeroporto do Recife.

E por fim e começo, saio com o Tecendo a Manhã:

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

Quando morreu, em 1999, João Cabral morava no Rio. Esta é uma de suas últimas fotos

Esses versos, muito tempo depois, o Portal Vermelho fez seus e dos leitores que constroem um novo dia. Em dúvida, olhem o galo lá em cima: João Cabral canta para todos nestes cem anos.

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